Reportagem do jornal O Globo da última sexta-feira (21) trouxe à baila o macabro depoimento que o coronel reformado do Exército Paulo Malhães, de 76 anos, fez à Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro sobre sua atuação na repressão durante a ditadura, nascida há exatos 50 anos de uma conspiração de direita que desaguou num golpe de Estado civil-militar. Sem demonstrar um pingo de arrependimento, Malhães revelou como os militares arrancavam arcadas dentárias, decepavam dedos e retiravam as vísceras dos corpos de presos políticos assassinados para apagar vestígios de suas vítimas antes de jogá-las ao mar. O oficial revelou também ter sido um dos responsáveis pelo desaparecimento do corpo ex-deputado Rubens Paiva, morto sob torturas no DOI-Codi do Rio em 1971. Disse mais: que o ministro do Exército – na época, o general Orlando Geisel, irmão do futuro ditador-presidente Ernesto Geisel – era informado sobre tudo o que se passava nos quartéis com os presos políticos.
As revelações do coronel Malhães, um dos principais torturadores do regime de 1964 ainda vivos, confirmam as denúncias feitas há décadas por ex-presos políticos, militantes de direitos humanos, jornalistas e historiadores. É a constatação, feita agora por uma fonte oficial, de que a tortura e assassinato de prisioneiros políticos não era um desvio de conduta de tresloucados do ‘porão’, mas uma política de Estado do regime para exterminar dissidentes. Isso mostra a importância da Comissão Nacional da Verdade, instituída pela presidente Dilma Rousseff em 2012 para esclarecer as circunstâncias dos crimes cometidos por agentes do Estado, principalmente no período da ditadura militar, entre 1964 e 1985.
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O mais assombroso, contudo, é constatar que, cinco décadas depois do golpe, no momento em que os crimes da ditadura começam a vir ao conhecimento do grande público, uma minoria de extremistas de direita, xenófobos e intolerantes, insista em agitar nas redes sociais o fantasma do ‘comunismo’ para insuflar o ódio contra as políticas públicas de inclusão social dos governos do PT. Os saudosistas das trevas chegaram a convocar em São Paulo uma reedição das malfadadas Marchas da Família com Deus pela Liberdade, manifestações que, em março de 1964, sinalizaram o apoio da classe média conservadora à conspiração direitista que derrubaria o presidente constitucional João Goulart. Segundo o depoimento de um dos organizadores da marcha atual ao jornal Valor Econômico, o principal objetivo da manifestação é pedir uma nova intervenção militar, desta vez para depor o governo da presidente Dilma.
Embora isolado e até patético, esse episódio expressa bem o ódio mortal que as oligarquias brasileiras e seus representantes sempre devotaram aos movimentos sociais e às lideranças políticas que, bem ou mal, tentavam defender os interesses populares frente ao poder dos grupos econômicos, nacionais e estrangeiros, e das forças políticas reacionárias. Foram essas mesmas forças que levaram o presidente Getúlio Vargas ao suicídio em 1954; tentaram impedir a posse de Juscelino Kubitschek em 1956 e de João Goulart em 1961 e finalmente tomaram o poder em 1964. O regime que instauraram perseguiu lideranças populares, calou artistas e estudantes, impôs o arrocho salarial sobre os trabalhadores, tornou o Brasil um dos países mais desiguais do mundo e implantou um terrorismo de Estado nunca visto sobre a sociedade a pretexto de combater uma tíbia resistência armada. Muitos que jamais pegaram em armas, como Rubens Paiva, Vladimir Herzog e Manuel Fiel Filho, foram brutalmente torturados e assassinados. “Choram Marias e Clarices”, dizia a letra de “O Bêbado e o Equilibrista”, de Aldir Blanc, imortalizada na voz de Elias Regina.
Felizmente a democracia está criando raízes no Brasil. Mesmo com sobressaltos, vivemos o mais longo período da história republicana sob o Estado de Direito. Os conservadores ainda dominam a cena política no país, mas a disputa entre eles os setores progressistas agora se dá no Congresso, dentro das regras do jogo democrático. E, na última década, os governos do PT resgataram e ampliaram a agenda reformista que incendiou corações e mentes no início dos anos 1960. Não é à toa que os saudosistas das trevas estejam tão assanhados.
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