Gostaria de iniciar este artigo já demarcando uma postura, ou como é cada vez mais corrente, meu lugar de fala: sou negro e comungo com aqueles e aquelas que veem o racismo no Brasil como um fato. O que parece óbvio nem sempre o é, já que há até quem escreva livro para negar este fato.
Sabendo então desta realidade, vemos que a necessidade de debater este tema vem no bojo da secular busca por igualdade de direitos, caminho espinhoso pelo qual trilham os povos indígenas e povos trazidos do continente africano, escravizados no processo de constituição-exploração deste país e node emergência do capitalismo europeu. Destaco aqui a palavra escravizados, dado que comumente vejo referências que utilizam a palavra “escravos”, naturalizando uma condição que na verdade foi imposta. Nossos ancestrais não eram “escravos”, mas pessoas sobre a qual a escravidão se impôs como a um decreto.
O racismo já estava manifesto muito antes e está muito para além de manifestações racistas como daquele jornalista. Aliás, não poderia deixar de fazer um breve comentário, embora considere que aquele jornalista é só uma expressão de muitos outros “em off” da TV brasileira, que não serão captados por nenhuma câmera, mas que são visíveis pelo não-lugar dos e das afrodescendentes nas telas.
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Claro, mesmo pego em off, momento em que se costuma dizer o que se pensa, ter no Brasil à frente de um jornal um racista fere qualquer ética mínima.
Infelizmente, as expressões de racismo no Brasil não se limitam a frases ou declarações, em off ou em público, como já fez um certo (a)político. Do antigo arcabuz ou das chibatas, as formas de tortura e de assassinato foram “modernizadas”, embora as “antigas práticas” continuem. Resultado destas, temos um quadro assustador que revela o lado mortal do racismo.
Entre a população negra, que somos em torno de 54% dos brasileiros, dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) indicam que dos jovens assassinados no Brasil, 78,9% são negros. A cada 100 pessoas assassinadas no Brasil 71 são negras. Um negro tem em nosso país 23,5% a mais de chance de ser morto que outras pessoas. As mais altas taxas de assassinato de jovens negros, verificadas nos dados do Ipea estão em estados do nordeste, com destaque para Alagoas, onde a taxa é de 80,5 para negros e 4,6 para não-negros e no Distrito Federal, com taxas de 52,7 para negros e 10 para não-negros.
PublicidadeEsta violência também se expressa na criminalização e na demonização das religiões de matriz africana, como o candomblé e umbanda. Diversos“terreiros”, pais e mães de santos (Babalorixás e Ialorixás) vêm sendo agredidos, com casas incendiadas por pessoas fundamentalistas. Novamente o Distrito Federal entra em cena, com dois terreiros incendiados em 2015 no chamado entorno da capital federal, mas estes ataques ocorreram também em outras regiões. Em agosto deste ano, por exemplo, um terreiro no bairro Curuzu, em plena Salvador (BA) foi invadido por policiais em uma das piores sinalizações de desrespeito com os espaços sagrados para as religiões de matriz africana. Importante artigo de João Ker analisa esta realidade no Rio de Janeiro.
Não podemos esquecer ainda que espaços seculares de resistência, os quilombos, que são mais de cinco mil no Brasil, seguem enfrentando ameaças e desmandos, inclusive das Forças Armadas. Vemos o exemplo concreto do Quilombo Rio dos Macacos (BA), onde não são desconhecidos casos de agressões e torturas por membros da Marinha. Ou ainda o caso de Alcântara, onde as comunidades quilombolas seguem ameaçadas por projetos de entregada base aos interesses externos, colocando em risco a permanência das comunidades.
É neste quadro e com a clareza desta realidade que devemos, ao meu ver, buscar debater e construir novas relações que tenham por base o respeito, a solidariedade e a valorização da diversidade, reconhecendo que a base onde o Brasil se constituiu e se edificou foi construída sobre corpos indígenas e negros, tendo como amálgama o racismo, preconceito e discriminação.
Para se construir novas relações, então, é necessário descolonizar ou de colonizar o pensar, o fazer e as próprias relações, como nos aponta Aníbal Quijano. É necessário destruir as velhas paredes da casa grande onde habitam preconceitos e construir novos terreiros de igualdade, casa comum onde caibamos todas e todos nós com a beleza das diferenças.
Neste sentido, não poderia deixar de destacar a Década Internacional dos Afrodescendentes (2015-2024), puxada pela ONU. A Década traz em seus principais objetivos:
– Promover o respeito, proteção e cumprimento de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais das pessoas afrodescendentes, como reconhecido na Declaração Universal dos Direitos Humanos;
– Promover um maior conhecimento e respeito pelo patrimônio diversificado, acultura e a contribuição de afrodescendentes para o desenvolvimento das sociedades;
– Adotar e reforçar os quadros jurídicos nacionais, regionais e internacionais de acordo com a Declaração e Programa de Ação de Durban e da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, bem como assegurar a sua plena e efetiva implementação.
Claro, campanhas não bastam. É necessária a efetiva participação cotidiana de cada uma e cada um de nós para redesenhar nossa história.
Felizmente há, e não poucas, pessoas que ontem e hoje contribuem para esta construção.
Ainda sob o clima de um 20 de novembro, que oxalá se estenda nossa Consciência Negra para todos os dias do ano: Salve Abdias do Nascimento, Dandara, Zumbi, Machado de Assis, Dom José Maria Pires (Dom Zumbi), Pai Euclides, Zezé Motta, João Cândido, José do Patrocínio, Carolina Maria de Jesus, Teodoro Sampaio, Luís Gama; Salve Douglas Belchior, Bando de Teatro Olodum; Salve todas as Casas de Axé, suas Iás e seus Babás.
Salve todas as negras, todos os negros, todos os povos indígenas que pela própria existência são a prova de que Re-existem.
Dica: documentário “Atlântico Negro, na rota dos Orixás”.
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