Fala quem pode, obedece quem tem juízo. Está aí um ditado popular perfeitamente capaz de explicar como se estabeleceram as relações raciais em nossa cultura. A fala pertence a quem tem o poder. E para aqueles que não o detém, o mais sábio conselho, ainda hoje, é não gritar, não reagir, não falar. Apenas obedecer. Pelo menos é esse o conselho dado a muitas brasileiras que estão prestes a trazer ao mundo uma vida.
Segundo dados da Fundação Perseu Abramo divulgados em 2010, uma em cada quatro brasileiras foram vítimas da violência obstétrica. Mas, quando racializamos essa discussão, percebemos que existem práticas diferentes de violência obstétrica com mulheres pretas e pardas, quando comparado com mulheres brancas.
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Conforme apresenta o estudo “A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil”, feito com dados da pesquisa “Nascer no Brasil: Pesquisa Nacional sobre Parto e Nascimento”, e coordenado pela pesquisadora Maria do Carmo Leal (Fiocruz, 2012), mulheres negras receberam menos anestesia em intervenções obstétricas dolorosas durante o parto, além de outras práticas específicas que colocam a vida dessas mulheres em risco. Há também pesquisadoras, como Fernanda Lopes, doutora em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (USP) e membro do GT Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), que corroboram com a nossa compreensão a respeito da maior mortalidade materna negra no Brasil, apontando que as mulheres negras são duas vezes mais propensas a morrerem no parto ou em complicações no pós-parto.
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Ao longo do século 19, e também do século 20, a medicina construiu uma determinada prática e discurso acerca do corpo feminino, sobretudo através da criação e consolidação de especialidades médicas como a obstetrícia e a ginecologia. O corpo da mulher passou a ser objeto de estudo e muitas violações, ainda mais nas situações de parto e nascimento. E esse discurso médico-científico sobre o corpo feminino está presente ainda hoje no imaginário social, afetando gravemente os indicadores de mortalidade materna em todo o mundo.
Uma das concepções presentes nesse discurso é que a mulher é um sexo frágil. Um corpo que requer cuidados. Um corpo delicado, vulnerável. No entanto, quando olhamos os experimentos realizados com mulheres negras escravizadas por aquele que é considerado o pai da ginecologia moderna, James Marion Sims e seus contemporâneos, como a realização de procedimentos cirúrgicos sem anestesia (sem anestesia!), percebemos que a concepção de “corpo feminino” era diferente da concepção de “corpo feminino preto”.
Por isso, não é de se estranhar que uma pesquisa realizada dois séculos mais tarde, como já citado, evidencie a permanência de práticas específicas e violentas nos corpos de mulheres negras, como a não aplicação de anestesia em intervenções médicas dolorosas durante o parto. E o mais emblemático desta constatação é perceber que, assim como Sims optou por não utilizar anestesia em seus procedimentos com mulheres pretas, num período em que já tinha a possibilidade de utilizar anestesia, boa parte da comunidade médica, ainda hoje, faz o mesmo. Escolhem todos os dias não romperem com a teoria racista de que pessoas negras suportam mais a dor do que as pessoas brancas.
Obviamente, essa ideia a respeito do corpo das mulheres negras não surgiu na medicina, mas com a experiência colonial da escravidão negra e de toda a artificialidade criada para justificar a ação criminosa de sequestro, trabalho forçado, estupro, violências físicas e psicológicas. É daí que surge a ideia de que corpos negros não são humanos. A medicina moderna, e suas especialidades, é forjada sob esses parâmetros – um discurso desumanizante sobre corpos negros e sobre o corpo feminino preto.
Em síntese, toda essa dinâmica nos mostra que nossas ações no presente têm memória. Elas têm um lugar de origem e, apesar de se adaptarem às novas técnicas e tecnologias, ainda guardam algo do passado em sua essência.
E pensando nessas rupturas e continuidades históricas, temos o curioso caso da fazenda Santa Clara, construída entre os anos de 1824 a 1856, localizada em Santa Rita de Jacutinga, município de Minas Gerais. Entre as muitas histórias que ocorreram neste lugar, está o emblemático caso da masmorra, uma espécie de sala de tortura, que foi estranhamente construída abaixo da sala de jantar da casa grande. Lugar onde o então proprietário da fazenda, Francisco Tereziano Fortes de Bustamante, gostava de descansar com suas filhas. Por esse motivo, os escravizados que estavam abaixo da sala de jantar, sofrendo castigos extremamente dolorosos, não podiam gritar para não incomodar aqueles que detinham poder sobre eles. Caso gritassem, seriam ainda mais castigados, podendo chegar à morte física. A dor era tanta que eles arrancavam pedaços da parede na tentativa de suportarem tais abusos e saírem o mais rápido possível daquela tortura. Essas marcas nas paredes encontram-se lá até os dias de hoje.
Talvez esse seja o momento que você se pergunte o que tudo isso tem a ver com tudo o que estivemos discutindo até agora. Embora ainda não seja do conhecimento de todos, grande número de mulheres, que utilizam os serviços das maternidades públicas brasileiras, são aconselhadas a não gritarem durante as contrações que anunciam a chegada de uma nova vida ao mundo.
Os relatos mais recorrentes dizem que, nos casos em que a gestante não suporta a dor em silêncio, passam a ser agredidas verbalmente e, em casos mais extremos, sofrem até mesmo agressões físicas. A equipe médica costuma fazer ameaças, como deixar a gestante desassistida durante o trabalho de parto, não intervir para amenizar as dores das contrações e declarar que elas só serão atendidas quando se calarem. Escutam coisas como: “na hora de fazer esse filho você não gritou de dor, então agora aguenta!”.
Ou seja, a prática médica age de forma punitiva com as gestantes, realizam uma série de abusos nos procedimentos obstétricos e utilizam esse momento para exercer poder sobre elas.
Então, o que no passado poderia ser classificado como uma imposição colonial branca sobre os corpos negros, hoje tornou-se uma estratégia de sobrevivência. Já se tornou uma “tradição” aconselhar gestantes a não gritarem durante o parto e as razões remontam aos tempos coloniais. Se gritar, a chance de sair morta da sala de tortura, ou melhor, do parto, é muito grande.
A colunista fez o filme Não grita sobre o tema deste texto. Veja abaixo o vídeo de apresentação, usado em ação de financiamento coletivo:
É terrível…!