* Ana Paula Barreto
Passando os olhos pelos portais de notícia (já que por dever de ofício é a praxe) dias depois da vexatória disputa pela presidência do Senado e do consenso, com ares de conchavo, para eleger o presidente da Câmara, deparamos-nos com um Twitter do derrotado senador Renan Calheiros sobre a sua recusa em ceder ao “assédio” de uma jornalista. De tão bizarro, os 140 caracteres poderiam facilmente virar meme como a famosa frase, que também virou meme, do menino que tentou enganar os pais com uma anotação escolar que afirmava: “É verdade este bilhete”.
E o que dizer então de um episódio ainda mais grotesco em que julgamentos e xingamentos foram dirigidos à deputada estadual Ana Paula da Silva (PDT), que tomou posse na Assembleia Legislativa de Santa Catarina no início do mês, apenas por vestir uma roupa entendida como “inadequada” pelos seus pares, todos homens? Inadequado é o machismo enraizado, é a postura de um homem público como o senador Renan para atingir uma mulher. A roupa ou o decote de uma deputada não deveriam sequer virar notícia.
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Não bastasse a veracidade da mensagem da “autoridade” em rede social nacional, custo a acreditar no que é noticiado na sequência: que no anúncio dos 22 novos líderes das bancadas partidárias na Câmara dos Deputados (só a nomenclatura já nos causa estranhamento) está apenas uma mulher (Leandre, líder do PV). E no Senado, até agora, somente duas (Daniella Ribeiro, líder do PP e Eliziane Gama, líder do PPS). E então, não é nada engraçado perguntar, em vez de afirmar: é verdade mesmo que, depois de “mentirmos” para nós mesmos que estabelecemos cotas partidárias para a representação feminina, continuamos a assistir a velha política e não se envergonhar de ao menos disfarçar que “tolera” mulheres no Parlamento, assim como “aceitam” LGBTs (não mais, depois da partida do deputado Jean Wyllys), negros, índios e representantes das religiões de matriz africana?
Quanto ainda teremos que ler manchetes como a que nos revelou, por exemplo, que uma entidade como a OAB Nacional, em sua nova gestão, já começa enfraquecida com o desgaste de não possuir na chapa da candidatura para a presidência da Ordem uma única mulher?
É inacreditável que façamos de conta e vergonhoso ver que os chamados partidos progressistas continuem corroborando com a tímida participação de vozes femininas que podem e devem ajudar a decidir as pautas que serão apreciadas nas Casas legislativas (vide o Psol na Câmara, que escolheu um deputado e não uma deputada para comandar sua aguerrida e, para nós, esperançosa bancada).
PublicidadeNão há bancada feminista ou projetos de lei voltados para garantir direitos das mulheres que cheguem perto do tamanho da força que teriam muitas deputadas e senadoras ocupando a liderança de suas bancadas partidárias, e opinando de “igual para igual” em meio a um ambiente misógino, assediador e patriarcal que é o Congresso Nacional.
Ora, ora, se não nos cabe aqui fazer uma singela análise de como se dá a convivência familiar dos chamados líderes partidários com suas companheiras, sim pois estamos nos referindo primeiro ao universo micro das relações heterossexuais (micro em todos os sentidos, pois é uma maioria, digamos assim, de mente bem pequena) que transpassa as portas das casas privadas para as chamadas “casas públicas”.
Nesse universo micro e privado dos “casais políticos”, até para parlamentares que insistem em se auto nomear feministas de plantão (ou seriam de ocasião?), até para aqueles que julgam estar construindo um novo mundo, uma nova forma de fazer política – o “novo” em tempos de bolor e retrocesso –, é necessária uma sincera reflexão sobre o quanto realmente esses líderes políticos gostariam ou achariam importante aplicar a igualdade entre homens e mulheres para além de seus discursos inflamados. Quem sabe poderiam começar, já no seu ambiente privado, a exercer de forma verdadeira a divisão das tarefas domésticas e os cuidados com os filhos, com suas companheiras de vida e trajetória.
Temos, nós mulheres, a certeza de que, se os avanços da porta pra dentro são extremamente tímidos, o que dizer então da porta pra fora? Não há sonho coletivo possível se mulheres continuarem a ser invisibilizadas seja no ambiente privado, seja nos espaços institucionais de poder e decisão. E, pensando nisso, lembrei imediatamente de um artigo encaminhado a mim por uma amiga e que aborda justamente o que tratamos aqui, fazendo-nos perceber que podemos aplicar uma espécie de “autocuidado” como estratégia política[1].
No texto, narra-se como é o papel “privado” das defensoras de direitos humanos e a falta de sororidade (conceito tão lindamente feminista para definir a solidariedade entre as mulheres), de respeito e de igualdade no dia-a-dia da vida doméstica. Pois, para além do assédio, da discriminação, da ameaça diária de suas vidas nas lutas políticas coletivas, há um ambiente doméstico frustrante em que parceiros, na sua maioria homens, fazem defesas apaixonadas nos espaços em que ocupam liderança propondo um mundo inclusivo e com divisão equânime de papéis entre homens e mulheres, mas não aplicam a prática desse discurso em suas próprias casas.
Há uma frase nesse artigo que cita a anarquista Emma Goldman, que, numa ocasião, censurada pelos companheiros de luta diante de seu “bailar inadequado”, bradou: “Se não se pode dançar, sua revolução não me interessa”. É isso! Se não pudermos “dançar, falar, liderar”, do que nos interessa a falsa representatividade coletiva partidária?
É urgente que homens entendam que, tanto nos espaços privados quando nos espaços públicos, dividir papéis, fazer pactuações e concessões são ações coletivas, jamais individuais. São alianças políticas, são decisões políticas. Por essa razão, também é uma decisão política que a revolução aconteça dentro dos cérebros masculinos, pois, se ainda não perceberam os homens, liderança é substantivo feminino. Já passou da hora de mostrar coerência na liderança política “masculina”, pois coerência e liderança são palavras precedidas de artigos femininos.
[1] https://sur.conectas.org/o-autocuidado-como-estrategia-politica/
* Jornalista formada pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e pós-graduada em Comunicação Legislativa pelo Universidade do Legislativo Brasileiro (Unilegis). Ex-assessora de Comunicação no Senado e chefe de Comunicação da Secretaria das Relações Institucionais da Presidência da República. Atualmente é responsável pela assessoria de comunicação do escritório Cezar Britto & Advogados Associados.
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