Luiz Cláudio Cunha *
No final de junho, no curto espaço de 60 horas, a presidente Dilma Rousseff trocou Brasília por Nova York e se manteve, impávida, nas largas fronteiras da escatologia.
Em Brasília, Dilma falou merda privadamente em uma tensa reunião na noite de sexta-feira, 26, na biblioteca do Palácio da Alvorada, reagindo com fúria ao depoimento do empresário Ricardo Pessoa, preso na Operação Lava Jato, que revelou ter doado R$ 7,5 milhões para a campanha do PT em 2014.
— Eu não vou pagar pela merda dos outros — avisou Dilma aos quatro homens que ouviam, em silêncio, a fétida alegoria presidencial: os ministros José Eduardo Cardoso (Justiça), Edinho Silva (Comunicação Social), Aloísio Mercadante (Casa Civil) e o assessor especial Giles Azevedo. — Não sou eu quem vai pagar por isso. Quem fez que pague — decretou ela, segundo o relato das repórteres Natuza Nery e Marina Dias, da Folha de S.Paulo.
Dilma disse e ainda pensou merda: — Zé, você não poderia ter pedido ao Teori [Zavascki] para aguardar quatro ou cinco dias para homologar a delação [do empreiteiro]? —, perguntou a presidente ao seu ministro da Justiça, como se fosse possível que alguém do Executivo interferisse nas ações e decisões do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) que conduz o processo da Lava Jato. Dilma estava especialmente irritada com a revelação feita horas antes da viagem oficial de cinco dias que faria a partir da manhã seguinte, sábado, 27, aos Estados Unidos, culminando com uma reunião de trabalho com Barack Obama.
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— Isso é uma agenda nacional, Zé, e você f… a minha viagem — emendou Dilma no seu ameno jeito de ser.
PublicidadeEm Nova York, três dias depois, Dilma sujou-se publicamente, numa sala do elegante hotel Saint Regis, na Quinta Avenida, onde a presidente cumprimentou efusivamente Henry Kissinger. Mais do que um encontro de absoluta nulidade diplomática, a troca de sorrisos ecoou uma sonora bofetada histórica. A inutilidade vem do fato de que Kissinger hoje, aos 92 anos, não é nada, além de um lobista retirado e palestrante ocasional muito bem remunerado. A bofetada vem do passado recente, quando Kissinger foi tudo e muito mais: assessor de Segurança Nacional da Casa Branca e secretário de Estado dos presidentes Nixon e Ford, entre 1969 e 1975, período em que era amigo do peito, suporte e mentor dos regimes militares mais sangrentos do Cone Sul.
Especialmente o do general brasileiro Emílio Garrastazú Médici (1969-1974), símbolo maior da repressão que prendeu em São Paulo em 16 de janeiro de 1970 uma guerrilheira do grupo VAR-Palmares chamada Dilma Rousseff. Levada para a OBAN (Operação Bandeirante) da rua Tutóia, ela sobreviveu ali a 22 dias de intensa tortura, que incluía pau-de-arara, choques elétricos, socos e palmatória. Eram técnicas de interrogatório que os brasileiros aprimoravam com os especialistas ianques que o sempre sorridente Kissinger da Segurança Nacional espalhava pelas ditaduras camaradas do sul do continente, todas alinhadas contra o fantasma do comunismo.
Parafraseando de forma desastrada a FHC (“esqueçam o que eu escrevi”), Dilma aparentemente esqueceu o que viveu e sofreu, ao rasgar seu melhor elogio ao patrono das ditaduras que ela combatia: “O professor Kissinger é uma pessoa fantástica, com uma grande visão global”, concedeu a ex-guerrilheira e ex-torturada, após sua inexplicável audiência ao ex-secretário americano. Um evento vergonhoso cuja incongruência histórica passou batida até pela militante imprensa de esquerda, com a notável exceção do sempre atento Mário Magalhães, autor da biografia definitiva de Carlos Marighella e de um texto soberbo em seu blog de excelência, que sempre vale ler para nunca esquecer (leia aqui).
Outro repórter esperto, o argentino Darío Pignotti, correspondente em Brasília da agência ANSA e do jornal mais prestigiado de Buenos Aires, o Página 12, foi atrás de quem nunca esquece, o ativista do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, Jair Krischke, que assessora a Justiça da Itália no julgamento de uma centena de autoridades latino-americanas denunciadas por envolvimento com a Operação Condor, inclusive quatro brasileiros. “Lamentei profundamente a falta de sensibilidade de nossa presidente”, criticou Krischke. Outro brasileiro ouvido pelo repórter da ANSA foi bem mais indulgente. João Vicente Goulart, filho do presidente deposto em 1964 com o apoio da CIA e suporte financeiro e militar dos EUA de Kissinger, achou que o encontro desatinado foi meramente “imposição do cerimonial norte-americano…”.
O estilo durão de Dilma
Quem conhece Dilma sabe que — nem que a vaca tussa! — seria possível lhe empurrar goela abaixo uma audiência intragável. Quem não paga a ‘merda’ dos outros, não aceita suas regras. Se recebeu, radiante, a mão amiga do ex-inimigo é porque algo tossiu bem à presidente brasileira. A mística do pavio curto e da casca grossa já faz parte do folclore dilmista, que ela rebate com uma frase bem-humorada: “Pois é, somos um bando de mulheres duronas, rodeadas por homens meigos”, costumava ironizar Dilma, quanto tinha ao lado a doce companhia de ministras como Gleisi Hoffman, Ideli Salvatti e Maria do Rosário. Muita gente jura, sem ousar confirmar nada, que viu auxiliares e assessores chorando ao deixar os gabinetes de Dilma — fosse na Casa Civil ou agora na presidência da República.
Esse estilo áspero, autoritário pode ser herança dos tempos da luta armada, como explica um companheiro de combate, o ex-guerrilheiro Fernando Pimentel: “Dilma lapidou seu senso de disciplina, de organização. Ela é uma pessoa muito metódica, organizada, severa, rígida com prazos, resultados e metas. Ela não transige com falhas ou erros. E isso, acho, tem a ver com nossa militância, porque na clandestinidade qualquer falha podia levar à prisão ou até à morte de companheiros”, explicou o atual governador de Minas Gerais ao repórter Ricardo Setti, na campanha de 2010 que a levou à presidência. Apesar dessa dura experiência e disciplina, Dilma embaralhou-se em Nova York, ao falar à imprensa logo após os salamaleques a Kissinger, ao confundir ditadura com democracia.
— Eu não respeito delator. Estive presa na ditadura militar e sei o que é. Tentaram me transformar numa delatora. A ditadura fazia isso com os presos, e garanto a vocês que resisti bravamente — gabou-se a presidente.
Como se sabe, todo regime de força tenta arrancar confissões de seus presos e dissidentes políticos pela tortura, e Dilma merece elogios por ter resistido. Outros, que nem sempre sobreviveram, não conseguiram resistir. Isso não os torna delatores, mas apenas torturados que sucumbiram à tortura, no limite de suas dores, que são pessoais e incomparáveis. Talvez ainda extasiada com a conversa de minutos antes com o ‘fantástico’ Kissinger, o ‘Dr. Strangelove’ do terror de Estado que ajudou a implantar no Cone Sul nas décadas de 60 e 70, Dilma trocou alhos e bugalhos. Lembrou que aprendeu na escola a não gostar de Joaquim Silvério dos Reis, o fazendeiro falido que, no final do Século 18, dedurou a conspiração que tentava libertar o Brasil do domínio da Coroa portuguesa. Sua denúncia levou Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, à prisão e à forca. O líder da Inconfidência Mineira morreu para se tornar herói da Pátria e Silvério passou à história não como delator, mas traidor. É uma diferença brutal que Dilma já devia ter aprendido — na escola e na vida.
Traidor é o canalha que delata o mocinho para os bandidos, como fez Silvério ao denunciar Tiradentes para os meganhas do Visconde de Barbacena. Ao contrário, delator — reconhecido e premiado pela Justiça — é aquele que entrega os bandidos para o mocinho, como fazem agora o empreiteiro Ricardo Pessoa, o doleiro Alberto Yousseff, o ex-diretor Paulo Roberto Costa e outros 20 arrependidos e envolvidos com a roubalheira na Petrobras. Sem que nada disso os faça heróis da Pátria.
Qualquer um pode e deve denunciar o que sabe ou descobre ser ilegal ou nocivo às pessoas ou à sociedade. Mas, só pode delatar aquele que, participante ou infiltrado em um grupo, bando ou organização criminosa, decide em um dado momento romper a prática criminosa e contar o que sabe para as autoridades e para a Justiça, movido por razões de consciência, por simples arrependimento, por mera conveniência. Até mesmo pelas vantagens legais de quem colabora com a lei, atraído pelos benefícios transparentes da delação premiada.
Se não está solidária aos bandidos, a presidente da República tem a obrigação de respeitar, sim, os delatores amparados e protegidos pela lei e pelos tribunais. Como pessoa de bem, Dilma não tem nenhum motivo para se opor à delação gratificada pela Justiça, sob pena de sustentar publicamente a omertá da Máfia dos grandes empreiteiros nacionais que assaltaram a maior empresa brasileira, que a presidente jura defender.
Repetindo FHC
Se não gosta de delator, cabe a Dilma Rousseff ao menos reverenciar as próprias leis que assina e promulga na condição de presidente. Ao contrário de FHC, Dilma deveria lembrar do que subscreveu. A lei 12.529, que ela firmou em 2011, ainda no seu primeiro mandato, já previa o ‘acordo de leniência’ para aceitar a delação premiada nos crimes contra a ordem econômica (Art. 86 e 87). Esses artigos impõem que o delator identifique os demais envolvidos, fornecendo informações e documentos que provem os crimes. A lei define os benefícios da delação, desde o perdão judicial, chegando a uma redução de 2/3 da pena original ou sua substituição por penas restritivas, desde que a colaboração seja voluntária e efetiva (Art. 4).
Dois anos depois, em 2013, como lembra o advogado criminalista Francisco Hayashi, Dilma firmou outra lei, reforçando as garantias processuais da delação. Em dois parágrafos do Art. 4, existem definições essenciais: o colaborador renuncia ao direito ao silêncio e fica comprometido a dizer a verdade (§ 14) e o juiz necessita de meios de provas diversos para condenar, não apenas baseado no depoimento do delator (§ 16). Os Art. 4 e 15 exigem a presença do advogado para negociar, confirmar e executar a colaboração. A delação premiada não nasceu com Dilma.
Vem do Governo Collor, quando a lei 8.072, de 1990, a chamada ‘Lei de Crimes Hediondos’, permitiu a redução de um a 2/3 da pena a delatores que permitissem o desmantelamento pela polícia de quadrilhas engajadas em crimes como tortura, tráfico de drogas e terrorismo. Uma lei posterior, a 8.137, beneficiou delatores de crimes contra o sistema financeiro e a ordem tributária. Em 1998, no Governo FHC, a lei 9.613 estendeu a delação premiada ao combate à lavagem de dinheiro e, no ano seguinte, a lei 9.807 regulamentou a proteção às testemunhas que fizessem a colaboração premiada. Lula, em 2006, assinou a lei 11.343, ampliando os benefícios da delação contra crimes do tráfico de drogas.
Assim, a delação que Dilma não respeita é um processo contínuo de aprimoramento legal que completa 25 anos e passa pela caneta de quatro presidentes, incluindo ela mesma. Em vez de perder tempo com gente da laia de Henry Kissinger, que não abre nenhum futuro para o Brasil e só lembra um terrível passado para os brasileiros, Dilma deveria aproveitar melhor sua agenda para não transigir com falhas ou erros, para ser fiel ao generoso perfil desenhado para ela pelo ex-companheiro de guerrilha Fernando Pimentel.
Os traidores
Dilma poderia começar pela História, lapidando melhor a percepção confusa que tem do que são delatores e traidores. Silvério, que dedurou Tiradentes, é um mero traidor. Está na companhia infame de outros personagens históricos que a presidente deveria revisitar, sem ter que passar pelo vexame do aperto de mão a que se submeteu agora com Kissinger.
Não é preciso ser cristã, como sabe a ex-marxista Dilma, para lembrar em primeiro lugar de Judas Iscariotes, o homem que vendeu Cristo por 30 moedas e virou símbolo universal de traição. O major norueguês Vidkun Quisling (1887-1945), membro de um partido local inspirado no III Reich, foi a Berlim, em dezembro de 1939, sugerir a Hitler que invadisse seu próprio país, coisa que o Führer fez sem cerimônia quatro meses depois. No poder, Quisling perseguiu os judeus e estimulou os jovens da Noruega a se alistar nas tropas Waffen SS. Morreu fuzilado, condenado por alta traição logo após a derrota da Alemanha. A palavra quisling, em norueguês, virou sinônimo de ‘traidor da pátria’.
Em busca de alguns trocados, o pastor Efialtes de Trachis, cidade da Grécia antiga em 480 a.C, cometeu a traição que definiu a batalha das Termópilas, o estreito caminho entre a montanha e o mar onde 300 bravos espartanos do rei Leônidas retardavam há dez dias o avanço do exército invasor de 300 mil homens do rei Xerxes I. O pastor grego revelou uma pequena trilha na montanha que permitiu que os persas flanqueassem a passagem para atacar por trás a heroica tropa de Leônidas e outros dois mil aliados gregos. Efialtes morreu dez anos depois, por razões ainda obscuras, mas sobrevive para sempre na língua grega: seu nome é sinônimo de ‘demônio’ ou ‘pesadelo’.
O farmacêutico Benedict Arnold (1740-1801) conseguiu combater por dois exércitos adversários na mesma guerra. Americano de Connecticut, lutou cinco anos no exército de Washington, que tinha nele um de seus generais mais leais na guerra de independência contra os ingleses. Desertou para o lado contrário, nos dois anos seguintes, e chegou a brigadeiro-general das tropas da Inglaterra, onde se refugiou depois. Morreu em Londres e foi enterrado sem honras militares. A primeira linha da biografia escrita em 1865 por George Canning Hill diz: “Benedict, o traidor, nasceu em…”. Um dos fundadores da Pátria, Benjamin Franklin, escreveu: “Judas vendeu um único homem. Arnold, três milhões”.
O último exemplo clássico de traidor, ainda vivo, é um brasileiro que Dilma deve lembrar: José Anselmo dos Santos (1942- ) entrou na história como Cabo Anselmo, um marinheiro que amotinou seus camaradas na Marinha e acirrou o clima de sublevação militar que levou à derrubada de João Goulart em 1964. Preso, fugiu, exilou-se em Cuba e voltou como guerrilheiro ao Brasil, onde passou a colaborar secretamente com o DOPS do delegado Sérgio Fleury, Infiltrou-se em grupos da luta armada e ajudou o DOPS a montar em Pernambuco, em 1973, uma emboscada que matou seis militantes da VPR, a organização de onde se originou a VAR-Palmares da guerrilheira Dilma. No ‘massacre da granja São Bento’, um dos seis mortos era Soledad Barret Viedma, uma linda morena paraguaia de 28 anos, executada com quatro tiros na cabeça, depois de presa e torturada. Estava grávida de cinco meses. O pai era o namorado, cabo Anselmo, o agente duplo que se infiltrou no grupo e armou a ratoeira que matou a mulher e o filho. Anselmo é, talvez, o exemplo mais acabado no Brasil do patife que resume a traição. Ele, como Silvério, merece o repúdio de Dilma e de todos nós.
Os delatores
Já os delatores, ao contrário do que diz a presidente, cumpriram o caminho inverso da remissão. Romperam penosos compromissos de subordinação, confidencialidade, sigilo e lealdade para com grupos, corporações e interesses que se mostraram alheios aos valores supremos da lei, da ética, do direito e da justiça, que protegem os cidadãos e definem as sociedades democráticas. Por conveniência legal, consciência política ou o amadurecimento de ideias e atitudes, eles refizeram suas opções, tomando decisões ousadas em benefício do bem comum.
Mais do que reduzir suas penas, redesenharam suas biografias e, em alguns casos, mudaram a História — corrigindo o mal pelo bem. São traidores, somente, para seus antigos parceiros ou comparsas de descaminho e de ilegalidade. Para o resto da humanidade, são apenas delatores que ajudam a reencontrar o caminho justo e certo, fechando os atalhos e desvios de caráter.
O empreiteiro Ricardo Pessoa, que Dilma não respeita, decidiu há quatro meses que não queria mais preservar os segredos impublicáveis da quadrilha que assaltou a Petrobras. Aceitou a colaboração premiada, prevista em lei, e passou a abastecer a Polícia Federal e o Ministério Público com detalhes da operação criminosa que agora ajuda a desmontar na Operação Lava Jato. Todos nós que deploramos o passado corrupto do empreiteiro devemos respeitar, agora, o seu presente de colaborador com a lei que combate a corrupção. Não é preciso gostar de Pessoa, basta respeitar a transição que ele faz, desertando da quadrilha para combatê-la com os instrumentos da lei. O caminho inverso é que não deveria merecer o respeito da presidente: todos os que afrontam a lei, pelas vantagens indevidas da corrupção, é que devem ser repudiados, especialmente pelo servidor público nº 1 do País — a presidente da República.
O italiano Tommaso Buscetta (1928-2000), um dos chefes mais importantes da Cosa Nostrasiciliana, é um mero traidor para os mafiosos, mas é também o mais importante delator para a Justiça da Itália e dos Estados Unidos. Preso no Brasil em 1983, ajudou a desmontar a Máfia nativa, colaborando com as investigações do juiz Giovanni Falcone, uma versão italiana de Sérgio Moro. Extraditado para os Estados Unidos, Buscetta dinamitou a Cosa Nostra norte-americano. Suas revelações levaram mais de 350 membros da hierarquia mafiosa para a cadeia. Morreu de câncer aos 71, ainda clandestino no interior dos Estados Unidos e amparado pelo respeitável Programa de Proteção à Testemunha.
O americano Daniel Ellberg (1931- ) foi fuzileiro na Guerra do Vietnã, voltou empregado pela Rand Corporation como analista militar e, dali, passou a trabalhar para o Pentágono. Operando no coração da máquina de guerra americana, ele se deu conta de que o povo e o Congresso americano estavam sendo enganados pela propaganda triunfalista da Casa Branca sobre uma guerra que, de fato, caminhava para a derrota. Ellsberg copiou clandestinamente 7 mil páginas de relatórios secretos que contavam a verdade e os repassou para o The New York Times, em 1971. Quando o jornal foi bloqueado na Justiça, Ellsberg liberou os Pentagon Papers para o The Washington Post e outros 17 jornais, tornando inútil a censura. Dois meses após a divulgação doTimes, um grupo de aloprados que trabalhavam com Nixon na Casa Branca invadiu o escritório do psiquiatra de Ellsberg, tentando provar que ele era desequilibrado. Um ano depois, junho de 1972, o mesmo bando invadiu o QG dos Democratas no edifício Watergate, marcando o início do fim de Richard Nixon. A democracia americana e o primado da liberdade de expressão, garantido pela Suprema Corte, se reforçaram a partir de Daniel Ellsberg, um admirável delator que, como tal, Dilma precisa respeitar.
William Mark Felt (1913-2008) era um policial que chegou a vice-diretor do FBI, a Polícia Federal americana. E contrariou o Governo Nixon, tornando-se a principal e secreta fonte dos dois repórteres do The Washington Post, Bob Woodward e Carl Bernstein, que cobriam o caso Watergate. Falava em encontros furtivos, rápidos, no subterrâneo de uma garagem em Washington, dando o caminho certo para a apuração precisa que atingiu o coração da quadrilha da Casa Branca e seu chefe, Richard Nixon. A delação continuada de Felt, que passou à historia pelo codinome de ‘Garganta Profunda’, tornou possível a mais significativa cobertura política da história americana e deu ao mundo a dimensão de um jornalismo altivo e obcecado por seu dever de servir ao público, não ao poder. Todos nós, jornalistas ou não, respeitamos um delator como Mark Felt.
O analista de sistemas Edward Snowden (1983- ) trabalhou na área de informática da CIA e, como terceirizado, atuou no setor cibernético da NSA, a mega-agência de vigilância global do sistema de inteligência dos Estados Unidos. Esse superpoder, que permitiu à NSA grampear os telefones de governantes mundiais, como Dilma Rousseff, produziu uma epifania em Snowden, que um dia pensou: “Isso é algo que não é para ser decidido por nós. O público precisa decidir se esses programas e políticas estão certos ou errados”. Então, cresceu nele a percepção de que é o Estado que deve servir ao cidadão, e não o contrário. Muito menos vigiá-lo. Snowden aplicou o maior golpe da história da inteligência americana, revelando em maio de 2013 programas e procedimentos secretos da NSA aos jornais The Guardian e The Washington Post. Com a ajuda de Sarah Harrison, advogada do WikiLeaks, Snowden voou de Hong Kong para Moscou, onde vive hoje na condição de asilado político, para escapar ao pedido de prisão do governo dos Estados Unidos, que o acusa de espionagem, roubo e transferência de documentos confidenciais americanos.
Tecnicamente, Snowden é um delator, que abandonou seus colegas de trabalho, seu empregador e seu país. Para o resto do mundo, que era vigiado por ele, é um herói. Dilma, um dos alvos da NSA denunciados por Snowden, talvez não o respeite, mas não é o que acontece na Universidade de Glasgow, a escola mais respeitável da Escócia, a quarta mais antiga do mundo anglofalante: foi fundada em 1451, meio século antes da descoberta do Brasil. Em fevereiro de 2014, Snowden foi agraciado com o cargo simbólico de reitor da Universidade de Glasgow, vencendo três concorrentes em uma eleição aberta e recebendo mais da metade dos 6.560 votos.
Outro especialista em tecnologia de informação, Hervé Daniel Marcel Falciani (1972- ) é um engenheiro franco-italiano que provocou o maior vazamento de dados bancários do mundo. Trabalhando na área de Private Bank da agência do HSBC em Genebra, Falciani percebeu que, mais do que gerenciar um programa de proteção a clientes, estava na verdade encobrindo atividades fraudulentas em dimensões planetárias. “Bancos como o HSBC criaram um sistema para ficarem ricos à custa da sociedade, através do apoio à evasão fiscal e à lavagem de dinheiro”, disse ele à revista alemã Der Spiegel. Em 2008, com os dados criptografados das contas secretas de 106 mil clientes espalhados por 203 países e 22 paraísos fiscais, somando mais de US$ 100 bilhões em depósitos não revelados, Falciani fugiu para a França.
Em dezembro passado, Falciani foi indiciado pela Suíça por violar as leis de sigilo bancário do país e por espionagem industrial. A França, que o acolheu, fez o contrário: indiciou o HSBC que Falciani delatou por lavagem de dinheiro. Assim, ele é bandido na Suíça e mocinho na França. Ou traidor para os suíços e delator para os franceses, uma diferença nada sutil que Dilma Rousseff talvez não tenha percebido.
A impunidade em xeque
A explosão de fúria de Dilma contra Ricardo Pessoa, o empreiteiro da UTC que ‘fodeu’ com sua viagem aos Estados Unidos, não é uma confusão pessoal e pontual. É uma incompreensão generalizada que vitima a imprensa brasileira em geral no caso específico da Operação Lava Jato, alvo de uma cobertura, mais ou menos hostil, que depende do viés partidário ou da intenção política — e quase nada do jornalismo.
Os brasileiros sempre se lamentaram que o Brasil seja o paraíso da impunidade, onde o braço longo da lei nunca alcança os poderoso, os ricos e os influentes. A partir de 17 de março de 2014, essa regra começou a ruir com a maior operação da história da Polícia Federal — a Lava Jato. Em 17 fases sucessivas, que nesta semana voltou a prender o ex-ministro José Dirceu, fazendo uma ligação direta entre Mensalão e Petrolão, a PF desarticulou um esquema de corrupção e evasão de divisas na maior empresa do país, a Petrobrás, atingindo o coração do império geralmente suspeito e sempre intocado das empreiteiras, o setor mais dinâmico e vulnerável do capitalismo brasileiro.
Cooptando três diretores da empresa — Paulo Roberto Costa (Abastecimento), Renato Duque (Serviços) e Nestor Cerveró (Internacional) —, os três principais partidos da base governista (PP, PT e PMDB) armaram, respectivamente, seus esquemas clandestinos de patrocínio estatal, fazendo caixa através das maiores empreiteiras nacionais, integrantes de um cartel que manipulava contratos e licitações bilionárias na Petrobras, segundo o Ministério Público Federal (MPF). Uma operação que teria movimentado cerca de R$ 10 bilhões, dos quais já foram recuperados R$ 870 milhões e bloqueados outros R$ 2 bilhões.
Os presidentes e principais executivos das maiores empreiteiras foram denunciados pelo MPF ou indiciados pela PF, incluindo aí a Odebrecht, a Andrade Gutierrez, a Camargo Correia, a Mendes Júnior, a OAS, a Queiroz Galvão, a Engevix, entre as mais destacadas. O STF autorizou a abertura de inquérito contra 47 políticos suspeitos de envolvimento na corrupção — entre eles, 32 que são ou foram do PP, 7 do PMDB, 6 do PT, um do PSDB e um do PTB. No bando, 11 senadores, 21 deputados federais e os dois chefes máximos do Parlamento: o deputado Eduardo Cunha, presidente da Câmara, e o senador Renan Calheiros, presidente do Senado, pela ordem os números três e quatro na linha de sucessão da presidência da República.
Entre empreiteiros, lobistas, doleiros, consultores e executivos, 23 já firmaram acordo de delação premiada, certamente um grupo que pode não ter o respeito de Dilma, mas receberá toda a consideração da Justiça, que é o que importa. Um único gerente da Petrobras, Pedro Barusco, confessou ter depositado US$ 97 bilhões em contas particulares na Suíça, dos quais o Brasil já conseguiu repatriar R$ 182 milhões.
Segundo Barusco revelou na CPI da Petrobras, ele começou a receber propina na empresa em 1997, no segundo Governo FHC, e o esquema de corrupção se ampliou a partir de 2004, no primeiro Governo Lula. Nas eleições presidenciais de 2014, conforme levantamento do MPF, as empreiteiras investigadas pela Lava Jato doaram, juntas, R$ 98,8 milhões aos dois candidatos que chegaram ao segundo turno – o tucano Aécio Neves e a petista Dilma Rousseff.
Todos esses números e fatos superlativos, apesar do desprezo de Dilma, deviam ser motivo de júbilo nacional. Enfim, temos a polícia e a Justiça atacando a intocável plutocracia e a roubalheira mais sofisticada. Mas, a leitura do noticiário não traduz esse orgulho. Pelo contrário. A má vontade fica explícita no noticiário que, com frequência, tenta desqualificar a Justiça, o juiz Sérgio Moro, o Ministério Público e a PF, destacando ou omitindo detalhes conforme sua simpatia ou antipatia partidária.
O Fla-Flu da imprensa
Mal comparando, como no Maracanã dos bons tempos, que se dividia entre duas torcidas inflamadas, temos hoje um Fla-Flu midiático envolvendo a Lava Jato. De um lado, uma imprensa que uns e outros, com as devidas nuances, definem como grande, tradicional, conservadora, reacionária, oposicionista, tucana e/ou golpista. De outro, com as ressalvas de cada um, a imprensa qualificada como pequena, alternativa, progressista, esquerdista, governista, petista e/ou legalista. O diabo é que, em alguns momentos, o leitor fica com a impressão de que ambos têm razão nas ofensas de parte a parte.
O jornalismo brasileiro, por isso, vive um mau momento, em que regride aos tempos do período anterior à ditadura militar, quando imperavam jornais de forte engajamento político-partidário. No trepidante interregno democrático de duas décadas que compreende a queda do Estado Novo de Vargas (1946) e a deposição de Jango (1964), os grandes diários nacionais se dividiam entre o PSD e a UDN, que representavam a direita agrária-industrial do campo conservador. Um único jornal, a Última Hora de Samuel Wainer, abraçava a pauta da esquerda trabalhista-nacionalista do PTB e seus aliados comunistas.
A imprensa de meados do Século 20 reforçou seu estigma golpista porque, como vivandeira impenitente, atiçava os quarteis em tempos de forte engajamento dos militares das três Forças Armadas no debate das questões políticas, em um ambiente radicalizado pelo confronto ideológico da Guerra Fria. Os clubes militares fermentavam a agitação militar que, ecoada e estimulada pela grande imprensa, levou à conspiração e ao golpe de 1964. Essa é uma diferença crucial, e alentadora, nesses tempos de forte debate partidário. Não temos mais o pano de fundo da Guerra Fria e os militares, despolitizados por 30 anos de democracia que os levaram à marcha forçada da legalidade constitucional, não fazem mais parte da discussão política. E isso é muito bom.
Tanto que a comandante-suprema das Forças Armadas, a presidente da República, é acatada com normalidade e disciplina, apesar de ser uma ex-guerrilheira e ex-presa política torturada pelo regime militar. Por isso, não é visível nenhuma aventura golpista com odor castrense no País, apesar dos imbecis que invadem as ruas e as redes sociais clamando pela volta da ditadura que nunca viveram. Assim, quem imagina golpear o mandato de Dilma Rousseff precisa contar não com as quatro-estrelas dos generais comprometidos com a legalidade constitucional, mas com a estrela decadente de um arrivista e inconsequente como Eduardo Cunha, que aposta no confronto para desestabilizar o Palácio do Planalto que ele aponta como inimigo a ser abatido.
Assim, para não ferir suscetibilidades, é mais saudável definir as duas torcidas organizadas da imprensa como ‘grande mídia’ ou ‘mídia alternativa’.
A grande mídia erra, e erra muito, quando é desonesta e bate pelo viés ideológico no governo, avançando os limites da legalidade constitucional e ampliando os espaços da intolerância mais reacionária. A mídia alternativa erra, e erra muito, quando é desonesta ao defender até os equívocos e bobagens do governo, transpondo os limites do bom senso e atropelando a inteligência do público.
Choque da cadeia
Existe um agravante, no caso da mídia alternativa: sua visão rasa de que tudo e todos que criticam o governo são de direita, e tudo e todos os que apoiam o governo são de esquerda. O mundo é mais complexo do que isso, e não tão desonesto. Um órgão de direita pode, às vezes, dizer uma verdade. Um veículo de esquerda pode, quem sabe, dizer uma mentira. Não é a orientação ideológica que determina e consagra, na origem, o que é mentira ou verdade. O bom jornalismo não se formata pela esquerda ou pela direita, mas pela informação honesta, verdadeira, legítima, precisa, que infelizmente tem inimigos poderosos, como ensina a História, à direita e à esquerda, às vezes simultaneamente.
Jornalistas mais velhos, adestrados pelo tempo, sabem que não devem servir como inocentes úteis em qualquer processo golpista. Como jornalistas e pensadores, cabe a eles a missão permanente de denunciar manobras golpistas, venham de onde vier, da direita ou da esquerda. É preciso cuidado, portanto, para não assumir posições supostamente democráticas que têm raízes no sectarismo político ou no fundamentalismo ideológico. Nada tisna mais a imagem combativa e crítica da mídia alternativa do que a indulgência plenária que, na sua maioria, ela concede às besteiras cometidas pelo Governo Dilma e seus próceres.
Um bom exemplo é a sanha do PT em pedir que Dilma Rousseff exija do ministro José Eduardo Cardoso o enquadramento da Polícia Federal pelo desgaste natural causado pela investigação da Lava Jato. O que é isso, companheiro? É difícil encontrar algum site, portal ou blog da mídia alternativa lembrando que a Polícia Federal não pertence ao PT nem ao Governo Dilma. É uma instituição do Estado, a quem cabe cumprir a lei, sob qualquer governo, petista ou tucano. Ninguém dos alternativos ficou injuriado por essa tentativa de manipulação política da PF pelo PT, embora sempre tenham reclamado de um eventual uso político da PF pelo PSDB, nos tempos de FHC.
Muitos desses sites e blogs da esquerda mais progressista, avançada e libertária são pródigos e ágeis na condenação em bloco ao juiz Sérgio Moro e à sua condução da Lava Jato. Exibem uma curiosa solidariedade aos ladrões da Petrobras, emocionados com as agruras de ilustres empresários pegos em flagrante, sensibilizados pelo horror de ver os chefões das maiores empreiteiras encarcerados em condições vexatórias. A mídia alternativa se apressou em ecoar um preciso relato da repórter Mônica Bergamo, ignorando o fato de que ela integra a redação de um veículo ‘suspeito’ da grande mídia, a Folha de S.Paulo. No dia 22 de fevereiro, na matéria ‘Na cela escura’, Bergamo relata o drama existencial dos 23 empresários e executivos presos na sétima fase da Lava Jato, encarando inesperadamente a dura realidade da custódia da PF em Curitiba.
Espremidos em três celas com único beliche, o lugar acolheu um número de presos quatro vezes maior. Cada cela tem um só vaso sanitário e uma pia. Um preso reclamou: “Nada separa a latrina do resto. A pessoa vai ao banheiro na frente de todos os presos ali. Colocamos um colchão entre a privada e as camas…”. Mesmo nas celas, embora inocentes, falavam baixinho e cobrindo a boca para evitar leitura labial, com medo de escutas ambientais. Privados de relógios, sofriam ainda mais, segundo um advogado contou à repórter: “Para quem não faz absolutamente nada, não ter noção do tempo que passa é muito cruel”. Sensibilizada, a PF acabou pendurando um relógio de parede em uma das celas. Como os talheres são de plástico, a faca não corta a carne servida – e os empreiteiros, antes acostumados aos finos talheres de prata de endereços elegantes da gastronomia internacional, eram obrigados a comer com as mãos.
Um horror!
O roubo do PIB
Os grandes empreiteiros, com certeza, tiveram na PF de Curitiba uma pálida ideia do suplício dos cárceres brasileiros, muitos deles construídos por suas empresas e que o ministro José Eduardo Cardoso, em um dia inspirado, já carimbou como ‘medievais’. O relatório mais recente do Infopen (Sistema Integrado de Informações Penitenciárias), com dados de 2014 e divulgados em junho passado pelo Ministério da Justiça, mostra que o Brasil tem mais de 607 mil presos, a quarta maior população carcerária do mundo. Eram, antes da Lava Jato, 233 mil encarcerados em 2000. Nesses 14 anos, essa multidão cresceu em 161%. Nesse ritmo, o Brasil terá cerca de 1 milhão de presos em 2022 — não se sabe quantos empreiteiros entre eles.
A presidente Dilma Rousseff, que já avisou que não vai pagar pela ‘merda’ dos outros, agora se lamenta pelo esterco conjuntural dos empreiteiros flagrados no assalto à Petrobras. Em reunião com 12 ministros na segunda-feira (27) para tratar da crise econômica e da negociação com o Congresso, Dilma reclamou que os efeitos da Operação Lava Jato provocaram uma queda de 1 ponto percentual no PIB brasileiro. A presidente nem lamentou a roubalheira, apenas se queixou da investigação sobre ela. Com essa tortuosa observação, Dilma passou a ideia de que o rombo das contas públicas é agravado por quem investiga a ladroagem, não por quem a comete. Nesse raciocínio errático, se a Lava Jato não existisse, o PIB aumentaria, em vez de cair. Quando se imagina que a presidente da República poderia louvar a polícia e a Justiça que combatem o crime, ela as desqualifica. Uma bobagem dessa grandeza foi replicada, com insistência, por aqueles que alertaram sobre a eventual depressão econômica causada pela ação do MPF e do juiz Sérgio Moro, acusados até de ameaçar a sobrevivência das grandes empreiteiras nacionais, afundando ainda mais a economia.
O mesmo e tolo argumento foi usado no Segundo Império, quando prosperou a campanha abolicionista que tentava tirar do Brasil o título de última nação do mundo com a escravidão legalizada. Com a mesma indigência mental de agora, os escravagistas alegavam que a libertação dos negros colocaria em colapso a economia, ao ferir gravemente os interesses dos grandes latifundiários que baseavam suas usinas, plantações de cana e criações de gado na abjeta força de trabalho das senzalas. Os donos de engenhos, senhores do setor mais dinâmico de uma economia atrasada, agrária e pré-capitalista, tinham a importância estratégica dos empreiteiros de hoje. Abolir a escravidão, diziam, seria a ruína do Império. A casa grande não tinha nenhuma preocupação com o aspecto moral do fim da escravidão, e nenhuma razão nos fundamentos econômicos da bobagem que vociferavam. O Brasil, como se sabe, sobreviveu, recriado, moralizado, modernizado. Insistir, agora, que o País cairá no buraco por causa de um punhado de empreiteiros pegos com a boca na botija é zombar da inteligência dos brasileiros.
O Brasil não quebra
O jornal Valor Econômico mostrou, em novembro passado, que é um exagero imaginar que o país ficaria paralisado no caso das grandes empresas investigadas na Lava Jato serem declaradas inidôneas. Se as nove maiores empreiteiras — Odebrecht, Andrade Gutierrez, OAS Queiroz Galvão, Camargo Corrêa, Galvão Engenharia, UTC, Mendes Júnior e Engevix — envolvidas na investigação virassem inidôneas, existiriam pelo menos outras 13 empreiteiras nacionais com a receita líquida superior a R$ 1 bilhão — e ainda imunes à Lava Jato. O professor de direito e infraestrutura da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Mário Engler, explica seu otimismo: “O mercado vai se acomodar e vão surgir outros players. O Brasil não é tão dependente das grandes empreiteiras como pode parecer. Elas têm muito poder, mas o País não pode se comportar como refém delas”.
O jornal lembra que existem no mundo ao menos 11 empreiteiras maiores do que a Odebrecht, em termos de receita. Entre elas, segundo a revista especializada Engineering News-Record (ENR), estão a espanhola ACS, a alemã Hochtief, as americanas Bechtel e Fluor, as francesas Vinci e Technip e a sueca Skanska. Antes que a xenofobia se manifeste é bom lembrar que grandes empreiteiras internacionais, como a Ferrovial, Acciona e Isolux Corsán, já atuam no Brasil.
A cada delação, a Lava Jato soma novas informações, dados, planilhas, balancetes, mensagens e cópias sem tarja preta de tenebrosas transações, impensáveis no mundo respeitável de bilionários que caíram em tentação, apesar de suas sólidas fortunas. Diante do constrangimento do flagrante policial e do vexame do cárcere coletivo, alguns acharam melhor delatar o que sabiam para abreviar o sofrimento da cadeia — e tudo isso deixou Dilma Rousseff consternada. A presidente devia prestar atenção ao que ensina Paulo Roberto Galvão de Carvalho, um dos procuradores que investiga a Lava Jato: “A delação premiada gerou uma reação em cadeia. A partir do momento em que alguém reconhece que havia o esquema e o pagamento de propina, passamos a ter mais provas em relação a outros envolvidos. As pessoas que não tinham o menor receio de serem punidas começaram a tê-lo e aderiram à delação. Isso veio como um efeito dominó”, explicou Carvalho à Deutsche Welle Brasil.
Com a colaboração do Ministério Público da Suíça, que identificou contas abertas no exterior pela Odebrecht para adubar os executivos camaradas da Petrobras, a Lava Jato localizou 56 atos de corrupção e 136 de lavagem de dinheiro. A empresa nega, mas a investigação calçou a denúncia contra Marcelo Odebrecht, presidente do grupo, e outras 12 pessoas por corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Só a Odebrecht, diz a Lava Jato, movimentou R$ 389 milhões em corrupção e R$ 1,06 bilhão em lavagem de dinheiro.
Hooligans e black blocs
Apesar dos fatos, dos números e do avanço da investigação, a Dilma do primeiro mandato, festejada pela demissão implacável de meia dúzia de ministros flagrados em malfeitos, aparentemente afrouxou seus rígidos padrões morais no segundo mandato, e exibe agora uma surpreendente contrariedade para com os delatores que ajudam na faxina da Petrobras. Essa dificuldade de percepção não é privilégio da presidente.
Com uma imprensa pontuada pelo tosco Fla-Flu ou Gre-Nal de torcidas organizadas em torno dos dois partidos que dividem o poder no País há duas décadas, espaços importantes da mídia abdicam da serenidade para vestir a camiseta de hooligans petistas ou tucanos, que se xingam e se ofendem em coros plangentes para destacar as falcatruas alheias, minimizando ou ignorando as roubalheiras de seu time favorito. Jornalistas de simpatias tucanas investem contra a corrupção petista, esquecidos dos malfeitos praticados por seus ícones do PSDB. Jornalistas de amores petistas atacam a corrupção tucana, tolerantes com as tungas cometidas por seus ídolos do PT.
Nessa guerra interminável, uma imprensa cada vez mais partidarizada, em suas várias plataformas, se afasta do jornalismo para o abraço de urso do facciosismo, que tenta convencer o distinto público mais pelo eco do adjetivo do que pela força do substantivo, mais pelo peso da opinião induzida do que pela informação produzida. Tudo isso provoca a partidarização acentuada de parte da imprensa e de parcela influente de seus profissionais, hoje rebaixados a golpistas ou governistas, acantonados em sites direitistas ou esquerdistas, em blogs ‘sujinhos’ ou ‘limpinhos’, em espaços que podem ser o black-hole da sensatez ou o big-bang da intolerância.
São mundos e universos restritos do pensamento único. Não há lugar para o contraditório, que permite o debate e estimula a inteligência. Impõe-se o pensamento único onde só os simpatizantes de um lado e outro são aceitos nos espaços de comentários para reproduzir, bovinamente, a reação de manada de uma multidão mesmerizada, radicalizada, black blocs do teclado, todos corajosamente protegidos pela máscara do anonimato, que dilui responsabilidades, propaga baixarias e dissemina mediocridades.
Assim, o jornalismo afunda na paixão e o País chega ao limite do absurdo quando o próprio presidente da Câmara comanda chicanas parlamentares para impor sua pauta reacionária, retrógrada, saudada em coro no plenário por deputados marchando em ridícula procissão e entoando salmos e cânticos bíblicos. Quando imbecis escrevem na calçada em frente ao apartamento de Jô Soares que o apresentador da Rede Globo deve morrer só por ter entrevistado a presidente da República. Quando um idiota se infiltra no hotel onde Dilma se hospeda, nos Estados Unidos, para ofender a presidente e depois se vangloriar, no Facebook, que é membro da direita e da ‘onda conservadora’.
Piada sem graça
Boa parte da mídia alternativa comprou o peixe podre do exagero, tentando desqualificar o trabalho da Lava Jato pela chacota. Comparam o juiz Sérgio Moro ao delegado Sérgio Fleury, o homem que torturava seus presos na ditadura. Nivelam a 13ª Vara Federal de Curitiba, na avenida Anita Garibaldi, aos infames endereços do DOI-CODI da rua Tutoia, em São Paulo, e da rua Barão de Mesquita, no Rio de Janeiro. Confundem a Justiça Federal do juiz Moro com os espaços de arame farpado da base americana de Guantánamo, em Cuba. São piadas infelizes, que apenas replicam o desarranjo de Dilma, ousando confundir ditadura e democracia. Humorismo em vez de informação é uma disfunção do jornalismo, que existe para esclarecer, não para desconcertar — muito menos brincar com coisa séria, como o duro combate à corrupção.
Para as gerações mais jovens, que podem acreditar que DOI-CODI é a mesma coisa que Justiça Federal, é bom explicar a piada boboca, que presta um desserviço à educação da garotada e à verdade histórica pela farsa da pilhéria abobalhada. Em ditadura, por definição, não existe justiça. Ao DOI-CODI, centros de tortura do Exército nas grandes capitais, as pessoas presas eram levadas encapuzadas, algemadas, sem mandado judicial, sem conhecimento das famílias, às vezes arrastadas porque já não podiam caminhar, pelos golpes ou tiros recebidos da repressão. Tudo era feito na clandestinidade, encoberto pelo breu da noite, como sempre se faz quando o arbítrio deixa de assumir seus atos vergonhosos. Não havia nenhum jornalista, muito menos fotógrafo da imprensa, para testemunhar a chegada ou saída de presos.
Basta comparar com a intensa cobertura da imprensa, hoje, nos procedimentos da Lava Jato em Curitiba. Os presos chegam e saem caminhando, sem qualquer restrição, muito menos algemas, à luz do dia, sob as câmeras da TV e dos fotógrafos, acompanhados por seus advogados e escoltados por agentes da Polícia Federal .
Confira as fotos abaixo, de Marcelo Odebrecht, de mão no bolso, e de Ricardo Pessoa, o delator que Dilma não respeita:
Laranja e preto
A desgraça das piadinhas fica mais rombuda quando se compara a Justiça Federal curitibana com a aviltante base americana de Guantánamo, em Cuba, onde a lei a e justiça não entram. Para lá são enviados supostos terroristas, que os Estados Unidos capturaram no Afeganistão e no Iraque, e onde são submetidos a torturas e a maus tratos, segundo a Anistia Internacional, que batizou o lugar como “o Gulag de nossos tempos”. Como prisioneiros de guerra, eles não têm assistência jurídica e pairam no limbo legal de uma base alheia ao direito internacional.
Desde 2002, logo após o 11 de Setembro, 779 presos foram levados para lá, sem acusação formada, sem processo e sem direito a julgamento. Hoje permanecem ali 116 presos, 48 deles em um impasse kafkiano: são “muito perigosos para serem transferidos, mas não passíveis de processo”, embora não tenham nenhuma acusação. Cerca de 20 menores de 18 anos estão lá, o que viola a lei internacional. Oito homens já morreram, seis por suicídio, segundo o Pentágono. Vinte e cinco presos fizeram 41 tentativas fracassadas de suicídios, confirma Guantánamo. O presidente Obama determinou o fechamento da base em 2009, mas a ordem trombou no Congresso republicano, que vetou a transferência dos presos para o território continental. Como se vê, Guantánamo é exatamente igual a Curitiba. O portal de entrada do Campo Delta 1, de máxima segurança, com vigilância severa dos soldados americanos, lembra muito a desguarnecida entrada da Justiça Federal onde acontece a Lava Jato…
A maior semelhança entre a base de Guantánamo e a da Lava Jato é o tom monocromático de seus frequentadores. Em Cuba, é o uniforme laranja berrante dos presos, em Curitiba, é o padrão preto-cinza dos ternos austeros do batalhão de advogados dos presos. O resto é muito diferente. Em fotos oficiais da Marinha americana, os presos aparecem com filtros de ar sobre a boca e óculos pretos sobre os olhos, as mãos cobertas por luvas, amarradas na frente por algemas de plástico, com macacão laranja e um gorro da mesma cor, sentados ou agachados no chão, sob controle estrito de militares, em um estreito corredor vigiado por cães pastores. Um forte contraste com o batalhão de senhores engravatados, carregando pastas executivas e mochilas com os documentos de seus clientes, os presos que eles visitam na Justiça Federal de Curitiba.
Tortura e inquisição
O festival de tolices continua quando se tenta vender a ideia de que Sérgio Moro é uma reencarnação de figuras malditas como Fleury ou Torquemada. É bom lembrar que o juiz da Lava Jato, com apenas 43 anos, nasceu na cidade paranaense de Maringá em 1972 — tempos terríveis em que a guerrilheira Dilma Rousseff, presa e torturada, sangrava nos porões do DOI-CODI. Quando nascia o juiz, o delegado Sérgio Fleury, na flor de seus 39 anos, já tinha a fama merecida de um dos símbolos da repressão do regime militar. Levou para o DOPS paulista a sua expertisede delegado truculento de Furtos e Roubos e de líder do ‘Esquadrão da Morte’, que executava marginais na periferia. Cooptou o cabo Anselmo para torna-lo agente duplo na guerrilha, armou a emboscada que matou o líder da ALN, Carlos Marighella, prendeu José Dirceu e outros líderes estudantis no congresso clandestino da UNE em Ibiúna, atuou no ‘massacre da Lapa’ que executou a liderança do PCdoB e virou peça essencial da repressão militar. Essa aliança o livrou da prisão, como líder do ‘esquadrão da morte’ denunciado pelo promotor Hélio Bicudo. A ditadura aprovou a Lei Fleury, truque que adiava qualquer prisão de réus primários, como era o caso do delegado. Na madrugada de 1º de maio de 1979, morreu afogado no litoral paulista, uma morte suspeita, mas conveniente para a ditadura. Foi enterrado sem necropsia. A notícia de sua morte, anunciada pelo jornalista Juca Kfouri — pouco antes do discurso do líder metalúrgico Lula no estádio de Vila Euclides, em São Bernardo —, foi saudada com uma explosão de aplausos do público de 100 mil pessoas.
O outro parâmetro de Moro, conforme seus detratores, seria Tomás de Torquemada (1420-1498), o inquisidor geral que espalhou o terror nos reinos de Castela e Aragão. Definido como o ‘martelo dos hereges, a luz de Espanha, o salvador do país, a honra do seu fim’, Torquemada, um frade dominicano e confessor da rainha Isabel, passou a perseguir os judeus e muçulmanos convertidos, a quem condenava a torturas terríveis e à morte na fogueira. Morreu de morte natural, no final do século 15. Trezentos anos depois, seu túmulo foi violado, os ossos roubados e incinerados.
Pela insistência da piada, parece que desejam a Moro algo parecido com o fim de Fleury e de Torquemada…
A gracinha mais irresponsável é a que tenta estabelecer algum tipo de paralelo entre a 13ª Vara Federal, na avenida Anita Garibaldi, no bairro curitibano do Ahú, com os dois endereços mais afamados da ditadura: o DOI-CODI do II Exército, na paulistana rua Tutóia, e o DOI-CODI do I Exército, na carioca rua Barão de Mesquita.
Nas duas maiores cidades brasileiras, onde agiam as organizações mais ativas da guerrilha urbana, concentrou-se a repressão mais violenta e sanguinária. A Tutoia, comandada pelo então major Carlos Alberto Brilhante Ustra, e a Barão de Mesquita, chefiada pelo major Adyr Fiúza de Castro, reúnem o maior número de casos de tortura e morte do Exército brasileiro, conforme levantamento da Comissão Nacional da Verdade.
Foram 51 mortos em São Paulo, 30 no Rio de Janeiro. Um frio levantamento de 1978 do então major de cavalaria Freddie Perdigão Pereira, um dos nomes mais notórios da repressão no país, mostra números inéditos de terror e sangue da Tutoia. Nos seus primeiros sete anos de vida, tortura e morte, ali foram presas 2.541 pessoas. Dessas, 1001 foram ‘encaminhadas ao DOPS para processo’, 201 foram destinadas a ‘outros órgãos’ e 1.289 acabaram liberadas. Morreram 51.
Vladimir Herzog vive
A tese insana de que a Justiça Federal em Curitiba funciona e adota os mesmos métodos bandoleiros dos DOI-CODI de São Paulo e Rio, os mais truculentos da ditadura, levanta uma instigante questão.
Se isso fosse verdade, Vladimir Herzog estaria entre nós, vivo e são.
Às 8h da manhã de 25 de outubro de 1975, o jornalista Vladimir Herzog, diretor de jornalismo da TV Cultura de SP, ingressou no prédio da Tutoia, convocado no dia anterior para prestar depoimento. Sete horas e muitas torturas depois apareceu morto na cela do DOI, enforcado com o cinto do macacão que seus carcereiros esqueceram de retirar, para inflar a tese de ‘suicídio’. Em março de 2013, a mentira de 37 anos foi desfeita pela Justiça que, a pedido da Comissão Nacional da Verdade, mandou refazer o atestado de óbito de Herzog, agora reconhecido como morto “em decorrência de lesões e maus tratos sofridos durante interrogatório em dependências do II Exército (DOI-CODI)”.
Em um primeiro momento, o general Ednardo D’Ávila Mello, comandante do II Exército, sobreviveu ao ‘suicídio’ de Herzog. Menos de três meses depois, outro ‘suicídio’ abreviou a carreira do general. Ao meio-dia de sexta-feira, 16 de janeiro de 1976, o metalúrgico Manoel Fiel Filho foi preso na fábrica e levado por dois agentes do DOI-CODI. Lá aguentou longas 25 horas. Uma nota oficial do II Exército anunciou que, às 13h de sábado, 17 de janeiro, o operário era a mais nova vítima do surto de ‘suicídio’ da ditadura. Dessa vez, na falta de um cinto, tinha se enforcado com as meias, dizia a nota, embora calçasse chinelos sem meias na hora da prisão.
Herzog entrou vivo e saiu morto do DOI-CODI. Ficou apenas a imagem inacreditável do preso enforcado com o cinto que ninguém usa na prisão, os pés dobrados sobre o chão da cela. Ninguém viu seu interrogatório. Mas ouviram. Presos que aguardavam no corredor o momento de sua inquisição ouviam os gritos de dor de Herzog sob tortura, até que se impôs um silêncio definitivo, sinistro.
Se Herzog tivesse, hoje, a sorte de cair nas mãos do juiz Moro, em vez dos celerados do DOI-CODI, desfrutaria do mesmo tratamento dispensado aos delatores que Dilma Rousseff, que um dia passou pelo DOI-CODI, não respeita.
As cenas públicas do civilizado ‘DOI-CODI’ do juiz Moro não deixam dúvidas. Os depoimentos não são clandestinos. Cada um com seu cinto, alguns com a gravata, depõem ao juiz diante de um microfone, numa grande sala com várias cadeiras ocupadas por advogados e seus assistentes. O vídeo dos depoimentos é distribuído à imprensa, exibido em todos os telejornais. Os delatores falam de forma serena, convincente, espontânea. E, mais importante: saem de lá vivos. Voltam para suas celas, mas vivos, benefício que não foi dado a Vladimir Herzog. Assim, a forçada comparação que se faz entre o DOI-CODI e a Justiça Federal de Curitiba, é mais do que uma piada infeliz. É um insulto doloroso, uma afronta à memória e à História.
O respeito, ou sua falta, está na base da crise de valores que transtorna a política e o jornalismo. Começa com a presidente da República, que não respeita delatores que são estimulados e amparados pela lei, e se estende à parte da imprensa que tenta desqualificar, pelo deboche e pelo escracho, a mais ampla, a mais consistente e a maior investigação de corrupção e lavagem de dinheiro da história do Brasil.
Um evento de grandeza suficiente para ser respeitado por todos — da presidente da República aos jornalistas que acompanham um processo histórico e pioneiro que quebra a impunidade de alguns dos agentes mais poderosos, intocáveis e influentes do país, que se atreveram a golpear os cofres e a imagem de nossa mais emblemática empresa pública.
Tudo isso merece respeito. E uma imprensa que se respeita deve encarar, com a devida seriedade, uma apuração penosa – mas necessária – para redimir um país tão machucado pela corrupção. Os jornalistas precisam entender, com precisão, seu papel, preservando sempre sua independência diante dos governos e dos poderosos.
Um respeitável jornalista alemão ensinou: “A função da imprensa é ser o cão de guarda público, o denunciador incansável dos dirigentes, o olho onipresente, a boca onipresente do espírito do povo que guarda com ciúme sua liberdade”.
Ele tinha 31 anos quando disse isso num tribunal, em 1849, defendendo-se de uma ação do governo local contra o jornal que ele editava, a Neue Rheinische Zeitung (Nova Gazeta Renana’).
O nome do jornalista era Karl Marx.
* Luiz Cláudio Cunha é jornalista. Texto publicado originalmente no Observatório da Imprensa.
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