Dias desses, no desembarque, vindo de Brasília para Curitiba, encontrei o ex-prefeito de Foz do Iguaçu (PR) Paulo MacDonald no aeroporto de São José dos Pinhais. Ele vinha com um livro na mão e perguntou-me: “Já leu este livro?”.
Respondi que não e que tampouco conhecia o autor. Pelo entusiasmo com que ele falava, deduzi que havia terminado a leitura durante a viagem.
Em seguida, perguntou-me: “Você devolve os livros que pega emprestado?”. Respondi afirmativamente, até por que não gosto quando emprestam livros meus e não devolvem. Aliás, sou um chato. Não gosto de emprestar livros, pois já emprestei muitos que nunca voltaram. E por não gostar de emprestar, geralmente não pego emprestado.
Com a minha resposta afirmativa, ele emendou: “Vou te emprestar o livro, mas devolva-me”. Dito isso, imediatamente pegou a caneta, abriu o livro e escreveu seu nome, ou seja, marcou quem era o dono. Terminou de escrever e esticou o braço com o livro na mão. “Toma, leia, você vai gostar. Mas devolva.”
O livro é um relato pessoal, em primeira pessoa, de um sequestrado. Waldemar Tebaldi, médico em Americana, interior do estado de São Paulo, foi sequestrado no dia 03 de março de 1970. A partir daí, por meses seguidos sua vida foi de sofrimento e incerteza.
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Tebaldi, acusado de terrorista, foi sequestrado, preso, torturado, transferido de prisões sem nem sequer uma acusação formal. No Dops de São Paulo, conviveu todos os dias com os policiais torturadores e suas vítimas. Como médico, passou a cotidianamente atender os que “caíam da escada” – era assim que os torturadores justificavam os ferimentos de suas vítimas.
PublicidadeEle relata no livro que viu pela primeira vez um torturado no dia 1º de maio de 1970, época em que o Brasil se preparava para a Copa do Mundo, “quando subiu para interrogatório um jovem aparentando, mais ou menos, 25 anos, aloirado, baixo, atarracado. Passadas umas três horas, ele voltava carregado. Vi-o passar pelo corredor, amparado por dois policiais, arrastando as pernas desgovernadas e o ouvi gemer o seu sofrimento”.
Como médico, Tebaldi atendeu-o na cela: “Encontrei o moço sentado no chão encostado na pilastra, no meio da sala, em estado deplorável. […] Apresentava escoriações, equimoses e hematomas generalizados; sudorese intensa, taquicardia, pulso filiforme, conjuntivas descoradas, palidez, distensão abdominal. Um quadro clínico muito grave, que se caracterizava por um choque hipovolêmico por hemorragia interna, resultante de traumatismo com ruptura de vísceras”. Ou seja, havia sido barbaramente torturado.
Esse moço foi retirado da cela. Dias depois, um cadáver cuja descrição coincidia com a sua foi encontrado num terreno baldio.
Posteriormente, o próprio Teobaldi foi torturado. Escreve ele que frente aos torturadores não tinha chance, algo que talvez encontrasse se estivesse entre “uma matilha de lobos”. “Numa luta entre feras, o homem tem suas vantagens, por ser fera maior. Aqui [na tortura] se mata não para comer, mata-se por que odeia-se. […] Ali o céu se debulhava sobre mim; despojaram-me de tudo que permite a um homem ser racional”.
Entre a cela e o céu, livro escrito por Waldemar Tebaldi, retrata um pouco o que foi a ditadura militar brasileira em pleno período da Copa do Mundo. Neste período, enquanto a maior parte dos brasileiros ficava na frente da TV, outros estavam na masmorra, sob tortura.
Em 2014 se completará 50 anos do golpe militar e do início da ditadura militar no Brasil. Só agora, com a Comissão da Memória e da Verdade, é que está sendo possível dar voz àqueles que a ditadura calou. Só agora documentos e depoimentos estão mostrando as maldades e crueldades praticadas por setores policiais e das Forças Armadas brasileiras.
Como sempre, após a leitura de um livro não sou mais o mesmo. Portanto, McDonald, o homem que devolve este livro não é o mesmo que o emprestou. Assim também será o Brasil após a Comissão da Verdade encerrar seu trabalho. A história do Brasil deste período também será outra. Não será aquela contada pelos ditadores. Nosso passado será devolvido.
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