A criança e o adolescente são prioridades absolutas para a nossa Constituição, conforme estabelece seu artigo 227: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
A expressão “absoluta prioridade” é utilizada uma única vez ao longo da Constituição, o que deveria orientar as ações do Estado de forma inequívoca. As razões para investir pesadamente na infância, sobretudo nos primeiros mil dias, estão fortemente embasadas em pesquisas científicas sobre a formação das bases da arquitetura do cérebro. O desenvolvimento do cérebro é sequencial: conexões mais complexas são construídas a partir de circuitos mais simples criados em uma fase anterior, tal como se constrói uma casa.[1]
As pesquisas apontam que pessoas que foram pobres na infância e tiveram menos condições para seu desenvolvimento: (i) apresentavam dois anos a menos de escolaridade em comparação com pessoas que não passaram dificuldades financeiras na infância; (ii) recebiam menos da metade da renda; (iii) trabalhavam 451 horas a menos por ano; (iv) reportavam três vezes mais problemas de saúde; (v) tinham probabilidade duas vezes maior de serem presas; e (vi) tinham cinco vezes mais chances de ter um bebê antes dos 21 anos.[2] Pelo lado da economia, não há investimento mais rentável que o investimento em crianças pequenas. O ganhador do Prêmio Nobel de economia James Heckman mostrou que cada dólar investido em crianças pequenas gera o retorno de 7 dólares para a sociedade, concluindo que investir nas crianças pequenas é a melhor forma de assegurar igualdade de oportunidades e superar a pobreza.[3]
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É urgente dar um sentido concreto à prioridade absoluta às crianças estabelecida na Constituição Federal.
Um dos recursos mais importantes para a primeira infância e dos mais escassos é o tempo dos cuidadores. A criança precisa de vínculo e afeto para se desenvolver, e isso demanda tempo por parte dos adultos. A falta de tempo, além de representar uma dificuldade para o estabelecimento do vínculo, também é um limite para outras ações que contribuam com o desenvolvimento da criança, tais como visitas domiciliares, redes de apoio de pais, elevação de escolaridade, entre outras ações.
No Brasil, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) garante 4 meses de licença maternidade e 5 dias de licença paternidade, períodos que podem ser estendidos para 6 meses (maternidade) e para 20 dias (paternidade), dependendo de adesão do empregador. Esse período, além de insuficiente e de não abranger a totalidade das trabalhadoras e trabalhadores do país (basta lembrar que os trabalhadores informais não têm nenhum tipo de apoio nessa fase do desenvolvimento de seus filhos), ainda reforça a desigualdade de gênero, que se reflete no mercado de trabalho e na própria divisão das tarefas domésticas e nas tarefas relacionadas ao cuidado dos filhos.
Para que houvesse prioridade absoluta à infância, tal como prevista na Constituição Federal, é necessário rever essas regras para assegurar, no mínimo, um ano aos cuidadores para dedicação à criança nessa fase primordial da vida, com uma divisão mais igualitária entre homens e mulheres. Uma possibilidade seria assegurar licença familiar de um ano, dividindo esse tempo entre os membros da família responsáveis pelo cuidado da criança, independentemente de sua posição no mercado de trabalho.
A licença familiar existe em países como a Suécia, onde a família dispõe de 1 ano e 4 meses para dividir entre si da forma que considerarem mais adequado, desde que o pai tire pelo menos 60 dias. Esse arranjo garante uma maior responsabilização dos homens pelos filhos e reduz a desigualdade no mercado de trabalho, uma vez que tanto homens quanto mulheres se ausentarão por longos períodos da vida laboral para cuidar das crianças.
Outro desafio, além de assegurar tempo para cuidar dos filhos, é a qualidade desse tempo. O Brasil possui um conjunto de políticas públicas que chegam às crianças pequenas, mas que precisam ser integradas e ter sua cobertura ampliada.
O Sistema Único de Saúde já prevê algumas ações de grande relevância, como o atendimento pré-natal às gestantes. O pré-natal é crucial para orientar os futuros pais, tirar dúvidas e inseguranças, responsabilizar o homem, que muitas vezes não se envolve nem durante a gestação, nem durante o parto, nem após o nascimento. Um bebê é uma mudança muito grande na vida de qualquer família e, por isso, é fundamental o acompanhamento dos profissionais de saúde e a interação em grupos de pais e mães, que dá um sentido de pertencimento e de percepção de que os problemas enfrentados são comuns e têm solução.
O parto é um momento muito especial. Esse momento deve ser humanizado, com uma preocupação constante com o bem-estar da mãe e do bebê. Procedimentos desnecessários que provocam sofrimento tanto na mãe quanto na criança devem ser evitados. A mãe deve ter à sua disposição os procedimentos que aliviem a dor e deem maior conforto. A presença do pai deve ser assegurada: pai não é visita. E cesáreas devem ser realizadas apenas em casos necessários. A Organização Mundial da Saúde indica a intervenção cirúrgica em apenas 10% a 15% dos casos. Mas, no Brasil, as cesáreas representam mais de 80% dos casos na rede privada.
O cuidado deve prosseguir ao longo da vida, com suporte às mães quanto ao aleitamento materno, com um olhar especial para a saúde mental dos envolvidos na criação do bebê, com a promoção de atividades que estabeleçam redes de apoio mútuo entre famílias. Famílias mais vulneráveis podem demandar atendimentos mais complexos, como visitas domiciliares, atuação de equipe psicossocial e atendimento médico-hospitalar para crianças e pais em situação de risco.
A educação tem também um papel crucial. Nas creches e pré-escolas, as crianças têm a oportunidade de socializar com outros adultos e outras crianças e de estabelecer outros tipos de vínculos que têm grande contribuição para o seu desenvolvimento. Além de benéficas às crianças, as creches têm impacto no mercado de trabalho, permitindo que as pessoas que têm filhos trabalhem e obtenham os rendimentos que permitirão oferecer melhores condições à sua família.
A melhoria das condições materiais da família tem impacto no desenvolvimento infantil. Assim, ações que melhorem a inserção de pais e mães no mercado de trabalho e programas de complementação de renda, notadamente o Programa Bolsa Família, geram melhores condições para o desenvolvimento da criança.
A grande potência está na integração de todas essas ações. Um exemplo da força da integração de políticas é uma pesquisa feita por docentes da Universidade Federal da Bahia que mostra que a integração entre o Programa Bolsa Família e o Programa Saúde da Família reduziu a mortalidade infantil por diarreia em 46% e a mortalidade por desnutrição em 58%.
A prioridade absoluta às crianças deveria ser traduzida em mais tempo para dedicar aos filhos, dividido de maneira igualitária entre homens e mulheres, com políticas públicas de apoio a esses homens e mulheres que assumem para si o desafio de criar uma criança, no nível de complexidade exigido para cada caso, assegurando-se as mesmas possibilidades de desenvolvimento infantil a cada uma das crianças, independentemente de sua origem.
Com medidas como essa, estaríamos mais próximos de assegurar igualdade de oportunidades a todos. O Distrito Federal poderia dar o exemplo e sair na frente, priorizando de maneira absoluta as crianças pequenas. Uma primeira medida, para exemplificar, seria obrigar que as empresas contratadas pelo Poder Público ofereçam licença maternidade de 6 meses e licença paternidade de 20 dias, como já permite a legislação atual.
* Marivaldo Castro Pereira é auditor na Secretaria do Tesouro Nacional, foi Secretário Executivo do Ministério da Justiça.
* Rogério da Veiga é especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, trabalhou com ações para o desenvolvimento da primeira infância no Ministério do Desenvolvimento Social e na Prefeitura de São Paulo.
* Rubens Bias é analista de Políticas Sociais, foi conselheiro do Conanda e trabalhou com projetos do Ministério da Saúde em Desenvolvimento na Primeira Infância no Acre, no Amazonas e em São Paulo.
[1] https://developingchild.harvard.edu/resources/inbrief-science-of-ecd
[2] https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/j.1467-8624.2009.01396.x; https://www.researchgate.net/publication/316879867_The_nature_and_impact_of_early_achievement_skills_attention_skills_and_behavior_problems
[3] https://heckmanequation.org/resource/invest-in-early-childhood-development-reduce-deficits-strengthen-the-economy
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