Maurício Rands*
O Vice-presidente Hamilton Mourão, ao lamentar a morte de João Alberto, acrescentou: “Digo com toda a tranquilidade para você: não existe racismo no Brasil”. A mesma tranquilidade não têm os familiares dos milhares de joões albertos que todos os dias são assassinados ou sofrem a violência policial seletiva. Segundo o Atlas da Violência, entre 2008 e 2018, as taxas de homicídio aumentaram em 11,5% para os negros enquanto diminuíram em 12,9% para os brancos. 75,7% dos assassinados no Brasil em 2018 foram negros. Proporção bem maior do que a dos negros no conjunto da população brasileira. Que, segundo a PNAD de 2019, era composta de 56,2% de negros (a soma de 46,8% de pardos e 9,4% de pretos, segundo a definição técnica de negros feita pelo IBGE). Como afirma Oscar Vilhena Vieira, o racismo naturaliza a exclusão, a subordinação e a exploração de uma parcela da população por outra. E, assim, impede a aplicação da lei de maneira igual para todos. Incrustrado em nossa cultura e instituições, gera condutas discriminatórias contra os negros. Vivemos num contexto de tolerância institucional e cultural com a barbárie que é o racismo.
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Por isso, os movimentos de luta antirracista continuam tão necessários. Ainda mais quando o país assiste estarrecido ao assassinato do negro João Alberto pelos seguranças brancos de uma loja do Carrefour em Porto Alegre. A cena cometida na véspera do dia da consciência negra teve requintes de crueldade. Durante os sete minutos de espancamento e asfixia, outros oito seguranças impediam as pessoas de tentar conter a violência.
Superar o racismo exige uma tomada de consciência individual. Uma nova atitude. Para isso, precisamos nos informar. Estudar o assunto e sobre ele refletir para não reproduzirmos a discriminação. Para não sermos prisioneiros inconscientes do racismo velado e naturalizado. Na academia, no jornalismo, nas artes e na mídia digital hoje temos uma nova geração de estudiosos que nos ajudam a entender os fundamentos da nossa sociedade estruturalmente racista. Vale dar uma olhada no que estão dizendo alguns desses intelectuais. O Globo (21/11/20) arriscou uma pequena lista: Djamila Ribeiro (filósofa), Sueli Carneiro (filósofa), Jurema Werneck (Anistia Internacional), Winnie Bueno (acadêmica e influenciadora digital), Flávia Oliveira (jornalista) e Sílvio Almeida (jurista). Vale também conhecer alguns dos personagens negros da história de Pernambuco e do Brasil homenageados em esculturas de Abelardo da Hora e Demétrio Albuquerque na cidade do Recife. Solano Trindade (poeta e ativista, Pátio de São Pedro), Naná Vasconcelos (percussionista, Marco Zero), Rainha do Maracatu Elefante Dona Santa (Monumento do Maracatu, Forte das Cinco Pontas), Zumbi (Praça do Carmo), Chico Science (Rua da Moeda). Aguarda-se uma estátua de Badia (fundadora da Noite dos Tambores Silenciosos).
Precisamos também de iniciativas institucionais para ultrapassar o racismo difuso. Há pouco a Associação dos Magistrados de PE e a Escola Judicial de PE organizaram um curso sobre racismo para magistrados e produziram cartilhas sobre o tema. A polêmica que se seguiu é uma prova da necessidade da iniciativa. O caminho por superar o racismo passa por normas jurídicas como o art. 5º da CF/88, XLII (“a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”) e a Lei nº 7.716/89. Assim como por ações afirmativas na educação e no mercado de trabalho. Os movimentos sociais organizados têm seu papel e com eles há que aprofundar o diálogo. A tão criticada imprensa está cumprindo função relevante. Basta ver as matérias publicadas neste Diário de Pernambuco para celebrar o dia da consciência negra. Ou as matérias da TV Globo no NE TV1, Jornal Nacional e em suas telenovelas. Não enxergar isso pode equivaler ao negacionismo do presidente que silenciou diante da morte de João Alberto e apressou-se a anunciar, na reunião do G-20, que o Brasil não teria tensão racial. O velho mito de que o Brasil seria uma democracia racial. Acredita quem quer.
PublicidadeEspera-se que as autoridades municipais recém-eleitas façam mais do que emitir notas de repúdio ao racismo estrutural. Que tal começar com a composição dos cargos da administração? Elas não poderiam refletir, pelo menos aproximadamente, a composição étnica e de gênero da nação? É ousado arriscar que se tivéssemos mais negros e mulheres no secretariado e demais órgãos da administração teríamos gestões mais sensíveis à causa do combate ao racismo e à misoginia? O país parece estar acordando do torpor que negava o racismo. Os dados refutam o argumento ingênuo ou interessado. Por isso, hashtags como #VidasNegrasImportam e #JutiçaporBeto estão bombando nas redes
*Maurício Rands, advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford
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