O Congresso Nacional vai realizar, nesta terça-feira (27), mais uma sessão para analisar vetos da Presidência da República. A pauta está cheia, como dizem os parlamentares, e inclui os vetos de Bolsonaro às mudanças feitas pelo Congresso na reforma administrativa geral do Executivo – que envolve temas como extinção de ministérios e a polêmica em torno do Conselho e Controle de Atividades Financeiras (Coaf) – e nas diretrizes para a Lei Orçamentária de 2020. Um dos vetos a serem analisados, entretanto, preocupa bastante organizações da sociedade civil que atuam em torno dos direitos dos cidadãos à privacidade.
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Trata-se do veto no 24, que inclui tudo aquilo que a Presidência da República tirou da última versão do texto da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) que passou pelo Parlamento. Ao todo, Bolsonaro vetou nove pontos do relatório do deputado Orlando Silva (PCdoB/SP) sobre a Medida Provisória 869, editada ainda por Michel Temer, criando a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD). A MP tramitou na Câmara e Senado no primeiro semestre e seu relatório, que restabeleceu à lei vários pontos que o próprio Temer já havia vetado, foi aprovado por unanimidade nas duas Casas. Mas, em julho, no momento da sanção, recebeu novas canetadas do novo presidente.
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Em carta enviada às lideranças dos partidos, a Coalizão Direitos na Rede – que reúne mais de 30 organizações da sociedade civil que acompanharam de perto a tramitação da Lei, entre elas o Intervozes – afirma que os nove vetos impostos ao relatório da MP desrespeitam todo o debate realizado entre parlamentares, setor empresarial e sociedade civil nos últimos dois anos. Isso porque o processo de elaboração da LGPD foi resultado de um longo processo de diálogo com os diversos setores da sociedade, tendo o texto passado por consultas, audiências públicas e por um amplo período de negociações, a fim de que contemplasse os anseios dos mais diferentes segmentos.
A Coalizão pede então que os parlamentares, dentro da prerrogativa que cabe ao Poder Legislativo, revertam ao menos três dos nove vetos em questão.
Direito à revisão de decisões automatizadas
PublicidadeAs decisões aplicadas por tecnologias automatizadas, controladas por algoritmos ou inteligência artificial, podem cometer erros, tanto pela falha de análise de dados quanto por falhas na arquitetura dos sistemas. Hoje, tais decisões já estão presentes nos algoritmos que classificam os cidadãos a partir do perfil psicológico, do perfil de consumo, dos hábitos de lazer e a partir do seu local de moradia, entre outros. Tais classificações são utilizadas para definir, por exemplo, acesso a crédito ou a vagas de emprego.
O texto aprovado no Congresso dava ao cidadão, em caso de discordância de uma decisão automatizada, tomada somente por máquinas, o direito a solicitar uma revisão por pessoal natural, ou seja, por um ser humano. Ou seja, era um direito para evitar discriminações ou erros introduzidos nos modelos automatizados de análise e conferir mais transparência e accountability a processos de perfilamento dos cidadãos em perfis de consumo, profissionais ou de crédito.
Essa revisão é prevista em diversos regulamentos de proteção de dados adotados em outros países, como na Europa – com a General Data Protection Regulation (GDPR) – e nos Estados Unidos, onde a cidade de Nova Iorque, desde 2017, instituiu uma comissão para analisar as decisões automatizadas que utilizam inteligência artificial no setor público. Com o veto de Bolsonaro, que os parlamentares podem derrubar, a revisão a que o cidadão tem direito poderá ser feita por outra máquina, tornando-a inócua do ponto de vista das demandas do cidadão.
Poder de sanção da Autoridade de Proteção de Dados
Outro ponto que preocupa a sociedade civil são os vetos que retiram da ANPD a possibilidade de aplicar sanções administrativas mais duras aos agentes de tratamento de dados que cometam infrações. Entre elas, a suspensão parcial ou total, por até seis meses, prorrogáveis, do uso do banco de dados onde houve a infração no tratamento, e também a proibição parcial ou total do exercício das atividades relacionadas ao tratamento de dados onde a infração foi comprovada. O texto aprovado no Congresso previa que tais sanções só poderiam ser aplicadas após medidas mais leves, como notificação e multa, terem sido adotadas. Mesmo assim, Bolsonaro vetou esses trechos.
Em nota, a Coalizão Direitos na Rede lembra que não foram raros os casos em que empresas deixaram dados dos seus clientes expostos, causando prejuízo e insegurança para milhares de cidadãos. No setor público, também sobram exemplos sobre vazamentos resultantes da imprudência no tratamento de dados, com impactos seríssimos para a população, como no caso do vazamento de dados de saúde.
“Excluir completamente a possibilidade de adoção de sanções mais rígidas por parte da ANPD enfraquece a legislação, abrindo espaço para que o tratamento de dados pessoais, por entes públicos ou privados, possa se dar de maneira relapsa”, afirma a rede de entidades, para quem a inexistência de medidas como essas resultaria em insegurança jurídica na responsabilização por infrações mais graves ou recorrentes.
Proteção a quem utiliza a Lei de Acesso à Informação
Um terceiro veto importante de ser derrubado é sobre o texto que proibia que os dados dos requerentes de pedidos de acesso à informação fossem compartilhados por entes do setor público com terceiros, das esferas pública e privada. Com o veto de Bolsonaro, perde-se a garantia da proteção desses dados por parte dos órgãos que recebem os pedidos via LAI (Lei de Acesso à Informação). Tal medida é extremamente grave, pois a possibilidade de compartilhamento de dados de solicitantes de informações públicas pode gerar diversos constrangimentos à liberdade de expressão e ao acesso à informação – entre eles, eventuais perseguições e retaliações por parte de agentes públicos que se recusam a fornecer informações do governo. A medida também permite ações de vigilância governamental, como o monitoramento do trabalho e dos temas de interesse dos jornalistas, empresas e organizações não-governamentais que usam a LAI para fiscalizar o poder público.
Recentemente, a Controladoria Geral da União (CGU) implementou um mecanismo que possibilita ocultar os dados pessoais dos requerentes no sistema e-Sic, de modo que a tramitação do pedido é realizada com base em um número de protocolo, prezando o anonimato do solicitante. É fundamental a derrubada do veto para que, com amparo legal, mecanismos como esse possam ser devidamente implementados em ampla escala e, principalmente, ser aprimorados, garantindo o princípio da impessoalidade na relação com a administração pública. Afinal, não há qualquer razão para que esses registros sejam compartilhados com outros órgãos e enviados para outras bases de dados. Eles interessam apenas ao órgão ao qual o cidadão dirigiu sua solicitação, para efeitos de comunicação entre o solicitante e poder público.
Na avaliação de diversos parlamentares que participaram da discussão sobre a medida provisória, esses também são os principais vetos a serem derrubados pelo Congresso. Ao lado da sociedade civil, eles acreditam que, se mantidos, não contaremos com uma legislação efetivamente protetiva e com mecanismos de enforcement que garantam sua plena implementação. Os dados estão lançados para terça-feira.
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