Quando pensamos que estamos no fim, vem uma retroescavadeira e cava um novo fim do poço. Quando um senador joga um veículo desse em cima de uma multidão e é parado com tiros no peito, é porque já não vivemos em estado de normalidade democrática. O que Cid Gomes fez e ao que foi submetido na última quarta-feira (19) foi a mais triste demonstração de que fracassamos – miseravelmente – como sociedade.
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Vamos ao desenrolar da história, do início. Tudo começou no dia 13 de fevereiro, quando o governador petista Camilo Santana anunciou uma nova tabela de reestruturação da carreira militar no Ceará. A categoria que, num primeiro momento, havia aceitado os termos recuou e iniciou um motim no dia 18.
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Em resumo, o que passou a acontecer foi algo muito semelhante a atitudes de milicianos. Viaturas foram furtadas, homens encapuzados passaram a circular pelas ruas nestas viaturas e baixaram um toque de recolher. Os comerciantes foram obrigados a baixarem suas portas. Segundo relatos, esses policiais militares obrigaram os colegas de farda a abandonarem o serviço, esvaziaram os pneus de outras viaturas e tocaram o terror na cidade de Sobral.
Cid Gomes, que sempre foi bastante pitoresco em suas ações, “tentou resolver” a situação. Se organizou com a sociedade, pegou uma retroescavadeira e jogou em cima dos policiais encapuzados. Ele avançou e tentou levantar a grade que os policiais seguravam. Parou, fez um leve recuo e, antes mesmo de voltar a ameaçar as vidas dos que ali estavam, foi alvejado com dois dos diversos tiros que foram disparados em sua direção.
PublicidadeA situação por si só já é absurda, mas toma contornos ainda mais sombrios com o que veio a seguir.
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De um lado, os apoiadores dos transvestidos de milicianos, incluo aqui o filho do presidente da República e deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). Do outro, os apoiadores do – quase – massacre da retroescavadeira. A guerra de narrativas foi formada e no meio deste ringue quem padece é a democracia.
Pare por um instante e imagine uma situação inversa: Eduardo Bolsonaro, no ímpeto de parar uma manifestação violenta da esquerda, pega uma retroescavadeira e joga para cima da multidão. Um dos cidadãos o alveja com tiros. Não tenho a menor dúvida de que os mesmos bolsonaristas que agora estão aplaudindo a atitude de franco atirador de araque estariam repudiando, falando que Eduardo era um herói que tentou parar com a algazarra e que foi atingido pelos esquerdopatas antidemocráticos e assassinos.
Da mesma maneira que os ditos progressistas de internet estariam repudiando a atitude de Eduardo Bolsonaro, chamando ele de antidemocrático, acusando-o de tentativa de homicídio e alegariam que o tiro foi em legítima defesa.
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A verdade é que a atitude de Cid Gomes é extremamente reprovável. Pouco importa o que os militares/manifestantes tenham feito antes ou durante o ato. Não se pode punir um crime com outro crime. Lei básica da lógica, da ética e da moral.
Quando Cid Gomes jogou a retroescavadeira para cima dos militares/manifestantes, ele colocou em risco a vida daquelas pessoas, que de farda ou não, com ou sem razão, de maneira correta ou errada, estavam tentando conseguir melhores condições profissionais.
Mas como quase tudo na história da humanidade, o inverso também tem sua verdade. Os militares não poderiam ter entrado em greve, isso é o que diz o próprio código que eles afirmaram que seguiriam. Os militares não poderiam ter roubado as viaturas. Os militares não poderiam estar com as armas do Estado enquanto não estavam de serviço. Os militares não poderiam ter dado toque de recolher. Os militares não poderiam ter aterrorizado Sobral. O franco atirador de araque não poderia ter atirado em um senador e nem em ninguém. Ao fazer isso, estas pessoas tiveram atitudes iguais as de milicianos.
Mas a milícia é o modus operandi do momento. Vemos os tais dos defensores dos homens e mulheres de farda entrarem na justiça contra Cid Gomes por tentativa de assassinato, mas jamais veremos fazerem o mesmo contra os milicos que praticaram todos os crimes acima mencionados. Assim como não os vemos fazer o mesmo com Flávio Bolsonaro (sem partido), que divulgou um vídeo falso –segundo IML – de um cadáver para tentar desviar de si a ligação que tem com membros da milícia.
Os bolsonaros são vizinhos de milicianos, namoram filhas de milicianos, empregam parentes de milicianos, têm transações bancárias com milicianos, homenageiam milicianos, tentam criar leis que beneficiam milicianos e, como era de se esperar, apoiam atitudes semelhantes a de milicianos.
Este apoio dos bolsonaristas vem vontade de verem preponderar no Brasil uma força paralela que está acima da Constituição, das leis e das instituições.
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O bolsonarismo é antidemocrático, tem desprezo pelo sistema de peso e contrapeso, sonha em fechar o STF com um cabo e um soldado, tá louco para instalar um novo AI-5, quer calar a imprensa, fechar as organizações não governamentais, prender ambientalistas, metralhar a petralhada, explorar os indígenas, apoiar ditadores que lhes são convenientes, e pisar nos que não o são. O bolsonarismo quer ver a milícia preponderar no país, uma milícia que o apoia e o quer para sempre no poder.
Porém, quando Cid Gomes ataca uma multidão com uma retroescavadeira e é defendido pelos ditos progressistas, quem é fortalecido é este bolsonarismo. Pois a escalada de violência passa a ser defendida por setores da esquerda, e quando os apoiadores do presidente fizerem o mesmo – não que já não o façam -, não adianta estes militantes reclamarem. A hipocrisia está em voga no Brasil pós-2013.
Estamos no pré-sal do poço da democracia e sinto muito dizer, mas estamos longe de chegarmos no fim.
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