Está para ser votado a qualquer momento na Câmara dos Deputados, um acordo entre Brasil e Estados Unidos de salvaguardas tecnológicas relacionadas a lançamentos de satélites a partir da base de Alcântara (MA). O acordo gera controvérsias, de um lado paramentares acusam o desalojamento de comunidades quilombolas que vivem na região, do outro o governo e parlamentares – inclusive do PCdoB – apoiam o acordo e afirmam que a base trará investimentos para a região e colocará o Brasil entre um seleto grupo de países capazes de lançar seus próprios satélites.
> Base de Alcântara: Urgência para votar acordo com Estados Unidos é aprovada
O acordo já foi defendido publicamente pelo governador do estado do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB). “Nós consideramos que a base deva ser um vetor de desenvolvimento nacional e regional”, declarou o governador em Abril.
Aliado de Dino e filiado ao mesmo partido, o deputado federal Marcio Jerry (PCdoB-MA) faz coro a esta interpretação e afirma que o uso da base deve gerar receita para o Maranhão. “Há a possibilidade de que o uso da base resulte em dividendos para o estado”, disse o parlamentar.
“Por ano são algumas dezenas de milhões de reais que são investidos em Alcântara sem um retorno disso. Se nós quisermos dar o uso comercial, a gente tem que obrigatoriamente aprovar este acordo de salvaguardas tecnológicas”, afirmou o presidente da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional, deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-RJ), ao Congresso em Foco no início do mês.
“Devido a posição privilegiada de Alcântara, que faz com que sejam economizados 30% de combustível, a gente vai ter uma demanda muito grande e com certeza, nos mais de 250 dias de Sol de Alcântara, a gente vai ver os lançamentos”, completou Eduardo Bolsonaro.
Para o deputado, este acordo coloca o Brasil ao lado de um grupo seleto de países. “Ao lado de China, Estados Unidos, Itália, Israel e Nova Zelândia, o Brasil vai fazer seu nome também na área aeroespacial”, afirmou.
Remoção das famílias
Segundo informações a Coalizão Negra Por Direitos, se o acordo for confirmado, cerca de 800 famílias quilombolas (mais de 2 mil pessoas) deverão ser expulsas de suas terras. Este é o ponto mais polêmico de todo o acordo.
“O problema é que você não tem qualquer tipo de restrição para a remoção dos quilombolas que estão presentes na região”, afirmou o deputado federal Glauber Braga (Psol-RJ) ao site, no dia em que a urgência para votar o acordo foi aprovada (4).
Já para Eduardo Bolsonaro, a remoção das famílias é uma situação saudável, pois ela propiciará com que a região se desenvolva e com isso, levará um futuro melhor para as famílias realojadas. “Eu vejo como saudável [que as famílias quilombolas sejam realojadas], porque depois de 2001, quando foi recusado o acordo com várias críticas neste sentido também, das regiões quilombolas, de lá pra cá foram sucessíveis governos de diversas estirpes políticas e os quilombolas seguem miseráveis”, disse o deputado. “Se os quilombolas têm uma chance de ter uma vida mais digna é com a aprovação deste acordo”, completou.
> Bolsonaro prepara decreto para acelerar acordos internacionais
Da fronteira pra lá
“É como os deputados do Maranhão falam, eles atravessam a fronteira, vão na Guiana Francesa, na cidade de Kourou, onde também tem um centro de lançamento, e lá eles viram a maior renda per capta da América Latina, uma economia pujante, tecnologia, enfim, tudo muito bem estruturado. Eu acredito que é isso que vai acontecer com Alcântara depois que a gente aprovar aqui este acordo de salvaguardas tecnológicas”, afirmou Eduardo Bolsonaro.
O centro espacial de Kourou foi inaugurado em 1970. A base gera 15% do Produto Interno Bruto (PIB) da região. Entre diretos e indiretos, a base gera 9 mil empregos, isso representa um a cada 10 empregos na Guiana Francesa.
Segundo dados disponíveis no site da base, somente em 2014, o setor espacial gerou 58 milhões de euros em receita tributária.
“Brasil, mostra a sua cara”
Loureça Vieira, 44 anos, é liderança do Quilombo de Mamona, que fica em Alcântara. Para ela, ao contrário do que afirmou o deputado Eduardo Bolsonaro, os quilombolas que vivem na região não são miseráveis. “Para nós, quando o filho do presidente diz que nós somos um povo miserável, nós cremos que miserável é o conhecimento dele por não conhecer o povo de Alcântara”, afirma a quilombola.
Para Milene Maia, Coordenadora Adjunta do Instituto Socioambiental, quando se vai analisar a condição social de um povo, como os quilombolas, deve ser levado em conta a perspectiva deles. “Esse olhar da miserabilidade dele [deputado Eduardo Bolsonaro] é um olhar de outra perspectiva e não a realidade deles [dos povos quilombolas]. Quando você faz uma análise desta, tem que ser levado em conta o que é qualidade de vida”, afirmou Milene.
Segundo Lourença, qualidade de vida é poder pescar, arar a terra e viver em comunidade. “O pessoal trabalha muito pela lavoura, pela pesca, pelo extrativismo e tudo isso é distribuído pelas suas comunidades”, disse a liderança local. “Vivemos uma vida simples, mas que é de fazer inveja a muita gente que mora na cidade grande”, afirmou.
A líder quilombola se mostra preocupada também com a ligação dos povos com a terra, com a história, com a ancestralidade. “Dentro daquelas comunidades está toda a história de Alcântara. É toda uma história de vida, são raízes que são ali instaladas nestas terras, conhecimentos que são passados de geração em geração”, revelou dona Vieira com pesar na voz.
Milene Maia explica este pesar da liderança local, pois as comunidades quilombolas têm uma ligação especial com o território. Para elas, a terra a qual pertencem é uma representação das lutas, da ancestralidade e dos conhecimentos tradicionais que vão passando de geração em geração.
“A questão da qualidade de vida deles não esta ligada apenas a questão financeira e econômica, é questão de estar com sua família”, afirmou Milene Maia.
Titulação que nunca vem
A titulação das terras é outra demanda muito pedida entre as comunidades quilombolas da região. Segundo dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), menos de 7% das terras quilombolas estão regularizadas.
“Lá eu nasci, lá eu criei e construí família, e lá eu tenho neto que está crescendo. Eu não saio de lá por nada, prefiro ser a lavradora que sou e viver de um modo decente”, disse Lourença Vieira para a reportagem. “O que Alcântara precisa é da titulação das terras, as pessoas vão morrer de depressão se tiverem que sair das suas terras”, completou.
Gato escaldado…
“Quem hoje está em uma situação de vulnerabilidade são justamente as famílias que foram removidas na década de 80”, alertou Milene Maia em referência a remoção de mais de 100 famílias durante a ditadura militar para a implantação da base. “Elas sim, elas foram removidas e hoje não têm condições de se sustentarem. As famílias que foram realocadas elas não conseguem nem produzir. Elas estão em vulnerabilidade e não conseguem nem plantar”, afirmou Milene.
Lourença não acredita que a implantação da base irá levar desenvolvimento para a região. “Em 1980 eles diziam a mesma coisa quando retiraram 112 famílias para instalar a base, e Alcântara continua no mesmo estado de antes”, disse a quilombola.
O deputado Marcio Jerry busca acalmar as populações quilombolas da região. Ele afirma que buscará converter os avanços que a o acordo trará para o estado do Maranhão, em ativos para as comunidade. “A gente não pode frustrar uma expectativa para o Maranhão. Esse acordo pode significar também a resolução de débitos que tiveram com as comunidades quilombolas”, disse o deputado. “O avanço de uma política aeroespacial precisa se converter em recursos para a melhoria das populações quilombolas”, completou.
O parlamentar afirmou que o acordo não prevê remoção das famílias. Ao ser informado que o deputado Eduardo Bolsonaro afirmou para a reportagem que as remoções devem acontecer, o parlamentar respondeu que se for assim, ele exigirá que seja com base nas normas do artigo 169 da OIT, que prevê consulta livre, prévia e informada aos povos.
“Havendo uma escolha improvável da remoção das famílias, nós estaremos na linha de frente para que todos os seus direitos sejam atendidos”, prometeu o parlamentar do PCdoB.
Tá chegando a hora
No dia 4 de setembro foi aprovado na Câmara dos Deputados um requerimento de urgência para a votação deste acordo. O que significa que o mesmo deve ser votado a qualquer momento no plenário da Câmara.
A Coalizão Negra por Direitos emitiu uma nota, afirmando que o requerimento de urgência faz com que o processo não respeite acordos internacionais, como a oitiva e consulta dos povos. “Não houve consulta prévia às comunidades que serão atingidas, como exige a Convenção 169 da OIT. Os quilombolas decidiram resistir e muito sangue poderá ser derramado. Ao cabo, todo o município de Alcântara será afetado direta ou indiretamente, ou seja, mais de 21 mil pessoas”, afirma a nota da Coalizão.
O acordo foi assinado em 18 de março em Washington pelos presidentes dos Estados Unidos e do Brasil, Donald Trump e Jair Bolsonaro e para entrar em vigor precisa ser aprovado pela Câmara e Senado.
> Entre agora no Catarse para colaborar com o jornalismo independente