Outro dia ouvi um barbeiro dizer enquanto me aparava as madeixas que a solução mais rápida para a violência “é a polícia parar de prender e começar a matar esses bandidos, sem exceção”. – Mas como assim, pra que tanta violência?, reagi. “Se quiserem completar a limpeza é só anular as penas de prisão, transformar tudo em pena de morte e ir executando aos poucos, até não sobrar nenhum”, respondeu, calmamente. E rindo.
Há uma preocupação planetária com a situação do Brasil em decorrência dos primeiros atos praticados pelo atual governo, que contaminam com o grão da intolerância e da violência as relações humanas no país que um dia já foi do samba, do carnaval e do futebol. Personalidades da estatura do moçambicano Mia Couto e do angolano José Eduardo Agualusa, expoentes da moderna literatura em língua portuguesa e exemplos de defesa dos direitos humanos, não escondem o temor com o que vem ocorrendo em terras de Vera Cruz. Poucos são os especialistas dispostos a esmiuçar essa “perda de humanidade” que passamos a viver de uma hora pra outra. Pontualmente até que se ouviam manifestações como a do barbeiro, aqui e ali. Ultimamente estão virando a regra. Como se a violência e a intolerância tivessem de uma hora pra outra se normalizado. Nenhuma mudança estrutural como a que vem ocorrendo nasce do acaso. É produto de um conjunto de condições que, combinadas, desaguam na deterioração dos índices de respeito e no apodrecimento da convivência pacífica e até amistosa que imperava até outro dia.
Leia também
A animalidade está escorrendo
Muito do que vem aflorando ultimamente estava represado pela ação de um pacto informal de resistência, que agora revela-se em sua total fragilidade. Tal como uma barragem que vinha recebendo algum tipo de manutenção e de repente, abandonada às chuvas e tempestades, terminou rompendo e deixando escorrer a animalidade e a violência.
A colunista canadense Naomi Klein (autora de “Não basta dizer não” e “Isso muda tudo: Capitalismo x clima”), afirma que os movimentos contrários aos extremismos – e favoráveis ao relaxamento dos códigos de conduta social, acrescento eu – como os que lutam a favor do meio ambiente, da liberdade religiosa, dos direitos de mulheres, dos gays, dos negros e dos migrantes e contra as desigualdades econômicas e sociais vêm atuando de forma autônoma e desarticulada. Até hoje, os líderes desses movimentos não perceberam que todas essas demandas estão conectadas. E a união que poderia fortalecer suas lutas nunca foi consolidada. Estamos longe de uma convivência civilizada.
PublicidadeIsso não é novo. A Abolição da Escravatura ocorreu há pouco mais de um século. Acabou com a exploração predatória e desumana da mão-de-obra escrava mas não aboliu o preconceito, essa deformação cultural expressa diariamente nas denúncias de preconceito racial. Para um outro estrato social, o dos homossexuais, até hoje não houve sequer uma “abolição”. Dormem nos escaninhos do Congresso e do Judiciário as propostas que criminalizam a homofobia, sem sinal de que serão desarquivadas e postas a andar. Tal situação propicia a profusão diária de atos homofóbicos que, em muitos casos, desaguam em violência e assassinatos contra gays e lésbicas.
Agora, observe-se o descaso com as questões ambientais em nome da produção a qualquer custo; com o crescimento dos feminicídios; com o aumento da concentração de renda e suas nefastas consequências; com a manutenção dos privilégios de toda ordem; com as legislações que afrouxam direitos trabalhistas e sociais; com o sofrimento de milhares de migrantes como os venezuelanos. Aí nos damos conta de quão distantes estamos de um ideal mínimo de convivência civilizada e justa.
Em escala planetária, não há como esquecer a figura insensível e patética de Donald Trump, o grande exemplo da atual polarização extremista erguendo muros em vez de pontes. E quando olhamos o mundo como um todo e vemos as posições de países do peso e a influência da Rússia e da China sustentando um conveniente apoio ideológico às atrocidades que Nicolás Maduro vem impondo ao povo venezuelano percebemos que o conflito Leste-Oeste, que teria acabado com a queda dos muros e com o fim da União Soviética, continua vivo e norteando as ações no âmbito da política internacional. E que tudo se inter-relaciona.
Não escondem e até se orgulham
Aqui no Brasil, ante a avalanche de denúncias de corrupção que devastaram o petismo, o movimento pendular apontou o extremo oposto. E nas últimas eleições Jair Bolsonaro foi conduzido à cadeira presidencial, na companhia de um séquito de congressistas integrantes de seu espectro ideológico de extrema direita. O problema é que esse presidente e o grupo que o cerca, de assessores a ministros, de gurus inspiradores aos próprios filhos dele, todos fazem questão não apenas de não esconder, mas até de exibir com orgulho o desprezo que sentem por valores essenciais que deveriam nortear ações e relações sociais. Não percebem que, na condição de líderes, suas palavras e atos avalizam comportamentos e atitudes. O resultado é o surgimento – ou eclosão, se quiserem – de uma intolerância e de uma violência que vêm permeando o cotidiano, e que vem perigosamente se naturalizando e se normalizando, a ponto de uma manifestação como a daquele barbeiro ser ouvida sem reação alguma pelos demais frequentadores da barbearia. Não haverá mais ninguém para se indignar
Ora, quando um presidente se solidariza com um condenado por ofender a honra de uma mulher, como foi o caso do tuíte de Bolsonaro em apoio a Danilo Gentilli; quando em vez de ações de valorização da educação o governo abre a porta para o armamentismo em massa e incentiva a troca da escola pelo ensino doméstico, transferindo às famílias uma responsabilidade que constitucionalmente cabe ao Estado; quando um presidente diz perdoar assassinos nazistas pelo massacre de 6 milhões de judeus; e quando tudo isso passa quase batido e as multidões não tomam as ruas em protesto, então é porque a serpente de mil cabeças está debaixo da terra chocando seus ovos. Em breve milhares de serpentes estarão soltas por aí. A frase daquele barbeiro é o anúncio de que, se não houver uma ação em sentido contrário, a banalização do mal, como advertiu Hannah Arendt, tomará conta da barbearia. E não haverá mais ninguém pra se indignar.