Ana Paula de Oliveira Castro, Ana Rita Souza Prata e Marina Vilar de Carvalho *
Após meses de discussões feitas por juristas de todo o país, o anteprojeto de reforma do Código Penal (PLS n.º 236/2012) trouxe algumas propostas de modificações em relação ao art. 128, do Código Penal, incluindo, como causas de excludente de ilicitude no crime de aborto, a anencefalia, a gravidez resultante de violação á dignidade sexual da mulher ou de emprego não consentido de técnica de reprodução assistida, bem como nas situações em que o feto padecer de graves e incuráveis anomalias que inviabilizem a vida extra-uterina ou ainda por vontade da gestante, até a 12ª semana de gestação, quando o médico ou psicólogo constatar que a mulher não apresenta condições psicológicas de arcar com a maternidade.
Mesmo na contramão dos países mais desenvolvidos, o incremento dessas possibilidades – lembrando que o aborto em casos de anencefalia já havia sido permitido após decisão do STF – apesar de ser modesto, foi uma tentativa de avanço em nossa legislação. Nosso Código é de 1940 e claramente não reproduz mais a visão da sociedade brasileira sobre o tema.
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Importante ressaltar que, de acordo com a proposta de alteração legislativa, em nenhum momento a prática do aborto deixaria de ser considerada crime. O que se pretende é a inclusão de outras hipóteses de excludentes de ilicitude.
Ocorre que foi noticiada a retirada da autorização de aborto por vontade da gestante pelo relator do anteprojeto, senador Pedro Taques (PDT-MT), de seu texto. O argumento utilizado foi de que tal hipótese seria inconstitucional porque o direito à vida é “cláusula pétrea”.
Sobre a descriminalização do aborto, apoiando o anteprojeto, já se manifestaram os Conselhos Federais de Medicina, Psicologia e Serviço Social, demonstrando que os argumentos de que a vida, maior bem jurídico protegido em nossa Constituição, não está ameaçada com a possibilidade do aborto nesses casos.
PublicidadePrimeiramente, devemos esclarecer que a Constituição não estabelece quando se inicia a vida. Assim, este início se dá em um momento diferente para cada um de nós. No texto propositivo de alteração do Código Penal está prevista a possibilidade de realização de aborto até a 12ª semana de gestação. Tal previsão existe, pois, do ponto de vista da Medicina, não há viabilidade de vida para um embrião de 12 semanas. Assim, pergunta-se: há de fato, nesse caso, um conflito de direitos fundamentais?
A inclusão da possibilidade de realização do aborto neste início da gestação se baseia em diversos argumentos, como a dignidade da pessoa humana, direito a privacidade, autonomia da mulher, além de motivos bioéticos e epidemiológicos.
Ninguém nega que uma gravidez e um filho transformam para sempre a vida de uma mulher, assim, deve a ela caber a decisão sobre a manutenção dessa gravidez. Além do mais, esta possibilidade de aborto pautada na vontade da mulher não é irrestrita e ilimitada. Essas situações só poderiam ocorrer se a gestação não ultrapassar a 12ª semana, bem como se houvesse atestado médico ou psicológico indicando o procedimento. Isso significa que haveria acompanhamento especializado e integral para se chegar a tal decisão.
Não se pode, ainda, esquecer que o abortamento é uma importante causa de mortalidade no país, sendo evitável em 92% dos casos. Além disso, as complicações causadas por esse tipo de procedimento realizado de forma insegura representam a terceira causa de ocupação dos leitos obstétricos no Brasil. Em 2001, houve 243 mil internações na rede do Sistema Único de Saúde (SUS) por curetagem pós abortamento.
Assim, clara a necessidade de se entender o aborto como uma questão de saúde pública. Isso significa construir uma política de educação em direitos sexuais e reprodutivos de grande alcance, no sentido de garantir conhecimento e autonomia das mulheres sobre seu corpo, sobre a vivência de sua sexualidade e sobre a escolha de quando engravidar e o irrestrito acesso aos serviços de saúde.
A sociedade precisa encarar o debate sobre este tema. A supressão da proposta neste momento impossibilita tal discussão, que deve se dar democraticamente e se pautar nos diversos argumentos técnicos, de forma laica.
* Ana Paula e Ana Rita são defensoras públicas e coordenadoras do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem), da Defensoria Pública do Estado de São Paulo; Marina é psicóloga agente do Nudem.
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