A passagem pelo Brasil da infoativista cubana Yoani Sánchez Cordero, bacharel em Linguística (Filologia) e fundadora do blog Geração Y, foi detonadora de manifestações contrárias, algumas delas de volume desproporcional ao “dano” que a visitante poderia produzir, e acompanhada de críticas e imprecações em blogs e outros meios que são percebidos (ou melhor, autopercebidos) como sendo “de esquerda”.
Sánchez é atacada pelas críticas que faz contra o governo cubano, o que entra em colisão com setores políticos (alguns de partidos no poder) que consideram que qualquer indicação de algo imperfeito nos herdeiros da revolução cubana deve ser considerado como sabotagem, aliança com o imperialismo americano, conivência ou clientelismo com a CIA, e até uma espécie de “heresia bolivariana”.
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Esse destempero não tem, em si mesmo, a menor relevância. Mas é relevante, sim, a forma procaz com que seus autores tentaram denegrir a figura do senador Eduardo Matarazzo Suplicy (PT-SP).
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Conheço Suplicy e acompanho sua carreira desde que eu cheguei ao Brasil, e me orgulho de ter podido colaborar com ele em várias ações, especialmente na defesa de Cesare Battisti, nos últimos quatro anos.
Quero fazer uma breve análise sobre a relação de Suplicy com os direitos humanos e o socialismo e sobre sua intervenção para que o governo cubano autorizasse Sánchez a sair do país, um direito que já os antigos romanos conheciam e (quase sempre) respeitavam.
PublicidadeSuplicy e o caso Battisti
Suplicy não tinha poder de decisão no caso Battisti, como teve o então ministro da Justiça, Tarso Genro, que usou esse poder de maneira corajosa e honesta, deixando uma marca de honra para o país, apesar de, de maneira algo análoga ao que acontece com Suplicy, ter sido criticado pela falsa esquerda, pelo populismo oportunista e pelos setores da situação, interessados em negócios e não em vidas.
Na qualidade de parlamentar influente e do senador mais prestigiado da América Latina, Suplicy se comportou humildemente como o mais ativo, eficiente e constante voluntário da causa de Cesare Battisti, ao extremo que ainda hoje deve sofrer pressões e atos caluniadores por continuar apoiando o escritor italiano em seus problemas cotidianos.
Esses assuntos estão brevemente destacados por mim na página 291 da edição brasileira de Os cenários ocultos do caso Battisti, e no capítulo 16 da versão francesa (algo maior que a brasileira).
O caso Battisti é, desde que conheço o Brasil, o único que, como disse Tarso Genro num artigo recentemente publicado, colocou à prova a qualidade da esquerda brasileira. Pessoalmente, acredito ainda mais: foi o único caso que dividiu de maneira límpida a verdadeira esquerda dos grupos que, por razões diversas, pensam sê-lo e, na realidade, apoiam governos populistas (um pouco melhores, em alguns aspectos, que as velhas oligarquias), porque isso lhes permite as vantagens de estar na situação e não na oposição.
Idêntica doação pessoal foi vista no caso Pinheirinho, quando Suplicy se debateu quase sozinho, enquanto altos dignitários do governo federal e até responsáveis pelos direitos humanos se limitavam a balbuciar alguns lugares comuns: barbaridade, absurdo etc. em voz bem baixa, para não irritar a gangue fascista que governa o estado onde aconteceu o massacre.
Suplicy e a política exterior
Quando Suplicy defendeu o direito da senhora Sánchez de sair de Cuba e vir ao Brasil, o ponto evidente foi o respeito a dois direitos humanos básicos: o direito à liberdade de expressão e o direito ao livre movimento, entrada e saída de um país, permanência etc. Isso foi repetido numerosas vezes, e ficou evidente em inúmeros fóruns. Por outro lado, é consistente com a posição equânime de Suplicy em relação a Cuba.
Quando o presidente Lula se referiu com desprezo à vida do dissidente cubano Zapata, morto por greve de fome em 2010, a voz serena de Suplicy se fez ouvir por cima das mais desumanas e ridículas considerações. Por exemplo, houve “revolucionários” brasileiros que acusaram Zapata de receber dinheiro da CIA para se suicidar, uma invenção delirante feita pela agência Prensa Latina. (Ninguém explicou como usaria Zapata o dinheiro no inferno, já que certamente não iria ao céu, pois o governo cubano é grande amigo do Vaticano).
Nesse momento, Suplicy teve a elegância de dizer que o presidente Lula deveria aproveitar sua visita a Cuba para ensinar democracia e direitos humanos ao governo cubano.
Quem quer colocar a mordaça?
Existem várias maneiras de entender a democracia. Uma maneira é a que atualmente defendem o capitalismo e a direita em geral, como se fosse a única forma: um governo eleito por voto universal, onde os candidatos são, na maioria dos casos, membros das elites que representarão, no Parlamento, seus interesses. Quando esses representantes sentem dificuldade em impor o poder da burguesia, esta elimina a democracia com golpes de Estado, como no Paraguai e em Honduras.
Por isso, no Brasil, até partidos claramente fascistas, que defendem o trabalho escravo, a expulsão de refugiados, o racismo, a xenofobia, os genocídios policiais etc. podem usar a palavra “democracia” ou seus derivados. Assim também acontece quando os partidos políticos de América Latina que defendem mais profundamente um Estado explorador, antipopular e repressor, se autodenominam “social-democracias”. Mas não confundamos os nomes com as coisas mesmas.
Apesar desses usos impróprios, há um senso progressista de democracia, como governo que tenta representar, pelo menos teoricamente, a vontade popular.
Democracia não é necessariamente de esquerda, mas toda esquerda deve ser democrática. Não existe esquerda totalitária por definição.
Talvez uma minoria dos que se percebem como de esquerda acredite na possibilidade de uma esquerda não democrática. Mas os que pensam que devem lutar pela ditadura do proletariado e pisar sobre todas as condições democráticas e humanitárias deveriam entender duas coisas:
1º. O que permanece vivo do marxismo, como acontece com outras teorias científicas, é a estrutura fundamental de conceitos e teses sobre realidade social, e não necessariamente as predições de fatos futuros.
2º. Quando Marx fala da ditadura do proletariado, não está falando de uma ditadura no sentido de tirania. Os que pensam isto talvez ficassem surpresos se soubessem que, nos mais de 30 volumes das obras completas de Marx e Engels, a palavra “ditadura do proletariado” aparece de maneira casual, apenas três vezes, e não como uma categoria fundamental, mas como uma referência secundária à luta do proletariado da comuna de Paris.
O conceito de “ditadura do proletariado” com sua carga autoritária surge depois da crise da revolução bolchevista, quando Lev Trotsky foi expulso do partido e depois perseguido. É aí que Dimitrov e Stalin tornam famoso o termo “ditadura do proletariado”. Mas, inclusive na versão pós-marxista do conceito de ditadura do proletariado, que aparece estudada em detalhe num trabalho de Lênin (Estado e revolução), não se fala do poder de um indivíduo ou uma família que domina num país, mas da hegemonia do proletariado na sociedade, substituindo a hegemonia da burguesia. Mesmo o conceito leninista de “ditadura do proletariado”, que é pragmático e se baseia na utilidade política, não identifica essa “ditadura” com “autoritarismo”. Muito menos ainda pode se encontrar essa identificação em Marx, Engels ou nos socialistas da época.
Os que dizem defender o socialismo ou comunismo verdadeiros, mas tentam proibir ou punir a liberdade de opinião estão cometendo um ato contraditório. Com efeito, qual é a vantagem para eles de colocar uma mordaça em Sánchez e em Suplicy?
Querer cercear a liberdade de expressão só faz sentido para as mensagens de ódio, que, por sua simples repetição, podem desencadear grandes danos sociais, como aconteceu no genocídio nazista, no de Ruanda, nas ações dos neofascistas etc.
A blogueira Sánchez pede a liberdade de expressão em Cuba, independentemente de quaisquer outras posições que defenda. Eu acreditava que os autodenominados militantes de esquerda também pediriam isso!
Direita e falsa esquerda
Os setores de esquerda que repudiaram a presença de Sánchez fizeram um enorme benefício à direita brasileira, uma das mais intrigantes e truculentas do continente. Era isso o que queriam? Ao ameaçar e injuriar Suplicy, animados com a “coragem” que sempre dá o linchamento em grupo, desprezaram a proposta dele de discutir as coisas cara a cara.
É verdade que a mídia e as gangues políticas que compram seus serviços iam dar a maior difusão a qualquer afirmação da blogueira que pudesse atingir o governo cubano. Mas estava aberta a possibilidade de discutir com ela, como aconteceu em outros lugares e em Cuba mesmo. Uma discussão carece de sentido quando é notória a falsidade das afirmações de um dos contendentes. Nesse caso, a polêmica pode contribuir para promover mentiras.
Entretanto, no blog de Sánchez há pontos escuros, cuja veracidade ou falsidade não é evidente, e que os defensores do regime de Cuba, se estivessem bem informados, poderiam esclarecer numa polêmica bem fundada.
Se esses grupos fizessem uma refutação razoável das acusações de Sánchez contra o governo cubano, estariam dissipando as sombras que muitas pessoas neutras têm sobre o governo que certa vez foi a tocha da esquerda em meio à escuridão do fascismo latino-americano. Por que não tentaram?
Costumamos dizer que a grande mídia não dá espaço para a dissidência, e isso é verdade.
Agora, uma figura como Suplicy, que a grande mídia tenta ignorar e distorcer, mas deve respeitar parcialmente porque seu prestígio é grande demais, ofereceu uma oportunidade de discussão aberta e democrática que foi repudiada pela força.
Esses episódios têm três consequências:
1. Com respeito a blogueira Sánchez, o ataque à sua presença vai deixar uma imagem ruim da “esquerda brasileira” nas comunidades da esquerda independente e realmente marxista, que existem mesmo, e que sempre defenderam as conquistas sociais do povo cubano, sempre se opuseram ao terrorismo praticado pela CIA contra a ilha, e continuamente reclamam o fim do bloqueio. Essas pessoas podem pensar que os revolucionários latino-americanos têm medo de discutir, e só sabem linchar. Ou seja, vocês, companheiros, não prejudicaram a blogueira, mas a nós, que temos convicções de esquerda e podemos ficar enlameados por esse ataque vandálico. Ao mesmo tempo, beneficiaram figuras asquerosas da direita brasileira, que chegaram a pedir até a expulsão do embaixador cubano.
2. Com respeito a Suplicy, os atacantes se estão somando às agressões que ele recebe da direita há muito tempo e, o que é pior, da direita do próprio PT. Há três décadas, ele representa a parte civilizada da política brasileira e, dentro de seu partido, representa um setor racional e ativo, que soube resistir com dignidade às obstruções e à sabotagem da sua atividade e de suas candidaturas.
3. Com respeito ao governo brasileiro, os colocadores de mordaça estimulam a infâmia dos blocos parlamentares da direita, que conseguem mais consenso para apoiar a blogueira. Com sua enorme miopia, esses setores não entendem que estão ajudando a sabotar os elementos progressistas que ainda estão no governo.
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