Marli Gonçalves *
Nasci em 1958. Faz as contas aí. Então em 1964 eu tinha só seis anos e nessa época de março daquele ano era apenas uma menininha pentelha, de Maria Chiquinha, indo para a escola pela primeira vez, abrindo berreiro (é, antes a gente não ia para a escola assim que saía da maternidade como agora). Dito isso, recorrerei necessariamente a uma forma muito pessoal para relatar o resultado, o clima e o tanto de mal que causou esse estrupício do golpe de Estado que o Brasil tomou na cabeça há 50 anos; esse buraco em que fomos jogados e que se reflete até hoje nesse nosso infeliz subdesenvolvimento, não só social, como político e econômico. Ainda hoje, 50 anos depois, minha memória de criança e, depois, de adolescente, se reativa com pequenos relances que certamente também marcaram você e o resto de nossas vidas. Se é jovem, nem me venha com muxoxos de “eu ainda não tinha nascido” – saiba que nada mais foi como antes e essa sombra da barbárie, tão imortal como os vampiros, nos aterroriza e suga até hoje. 50 tons de cinza, sem prazer de sexo; só o sadismo, que foi se infiltrando quando pintou de verde-oliva o espaço político, dizendo-se em prol do nosso “bem”. Aqui, ó! Da minha memória, ali na Rua Augusta, por onde minha mãe me arrastava para eu ir à escola, lembro do ambiente pesado, que só foi piorando à medida que eu fazia o primário. Antes era mais ou menos assim: pré-primário, um ano. Primário, 4 anos. Ginásio, 4 anos. E aí vinha o “Clássico” ou o “Científico”, já que o “Normal”, que formava as professorinhas, já começava a entrar em decadência. Em 1969, quando o caldo entornou de vez, me preparava para minha adolescência. Não esqueçam que foram praticamente 20 anos de sofrimento, quase 20 anos totalmente de censura, maldade, mortes, torturas, exílios, desinteligências. Acredite: é daí que se acentua essa cultura que ainda temos, de corrupção, desmandos policiais, esquerda X direita – coisas que foram jogadas como sujeira para debaixo de um tapete que ainda teimam em levantar de vez em quando. Uma sujeira indelével. Outro dia mesmo, revirando alfarrábios, achei os livros de Educação Moral e Cívica que éramos obrigados a decorar, capítulos inteiros de “organização política e social”, como era descrito. Enormes. Carregávamos para lá e para cá. Normas, ordens, ditames. E toma Hino Nacional entoado com a mãozinha pra trás todos os dias no pátio. Ai de quem saísse desse círculo de soldadinhos. Quanta coisa não li, não aprendi, não pude conhecer, saber, viver. Nunca chegou aqui. E como tudo tem seu tempo, muito disso o pessoal de minha geração não conseguiu recuperar. Relembro ainda que em casa, todas as casas, tudo era meio sussurrado, e nossos pais, creio, temiam que se ouvíssemos algo, comentaríamos na escola, alguém ouviria, e a coisa poderia ser vista como conspiração. Vivíamos assustados. Até o nome de nossos bichos papões eram diferentes: era general isso e aquilo, um tal de Fleury. Qualquer batida na porta podia ser polícia. Se eu vivi isso, e meus pais não tinham nada de ativistas, imagino o que passaram outras famílias. (A música era a Jovem Guarda, a Bossa Nova, o Fino da Bossa, os festivais da canção, protestos em forma de vaias). A coisa só foi piorando e aos 11 anos, já em outra escola e morando em outra rua, as tais sombras nos envolveram de forma ainda mais tenebrosa. Vi amigos mortos pela Rota 66. Em uma semana matavam o Marighella que ainda fui ver, caído e baleado em um Fusca, na esquina de cima, cercado por homens que, para mim, em minha memória, usavam xadrez, paletó xadrez. Já devia até ter um pouco de jornalista no sangue, coisa que puxei de minha mãe, sempre curiosa. Tanto que dias depois, da janela ela assistia sem querer ao tiroteio, na esquina de baixo, em um dia de feira. Era o “justiçamento” (a esquerda chamava assim) de Henning Albert Boilesen, do Grupo Ultra, financiador da repressão que comia o couro de quem enfrentasse a ditadura. Bombas explodiam. Deixadas em esquinas, enviadas pelos Correios. Ameaças eram comuns, alcaguetes se criavam como ervas daninhas. Primeiro prendiam, depois arrebentavam, depois perguntavam. A tirania, o desrespeito. Foi esse ambiente que, porque nasci em um ano de glórias, 1958, enfrentei. Não é de admirar que com pouco mais de 17 anos eu também já estivesse na luta, pelos direitos das mulheres, pela anistia ampla geral e irrestrita, pelas eleições diretas, pela volta dos que foram, com o movimento estudantil, nessa que foi a segunda fase antes do fim da ditadura. Menos cruel, e até mais vitoriosa porque levou, enfim, à abertura. 31 de março de 1964 não é data que se comemore. É data para que nunca mais, nem em pensamento, nada daquilo retorne, aconteça o que acontecer. Nosso país já nunca mais será o mesmo, nem que se retorne à gloria de uma seleção campeã, que possa se sobressair. Perdemos 20 anos de nossas vidas, que não voltam jamais. Nem para quem ainda nem nasceu.
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* Marli Gonçalves é jornalista. Escreveu este texto com um terrível aperto no coração.
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