Acabei a assistir ao impactante filme “O Mauritano”, dirigido por Kevin Macdonald, com roteiro de Rory Haines e Sohrab Noshirvani, exibindo-se no elenco os talentos de Tahar Rahim, Jodie Foster e Shailene Woodley. O filme é baseado na história do mauritano Mohamedou Ould Slahié. Sequestrado ilegalmente em seu país, foi transferido para prisões secretas na Jordânia, no Afeganistão e, finalmente, no campo de concentração de Guantánamo. Torturado por onde passou, não teve direito à defesa, informar à família de que estava preso. Tudo era secreto, inclusive a acusação, as provas suspostamente apuradas ou mesmo constituir advogado. Parte de sua história está contada no seu impressionante livro-denúncia O Diário de Guantánamo, quando narra os crimes contra a humanidade cometidos por autoridades estadunidenses, na prisão militar incrustada na famosa e bloqueada ilha cubana.
Leia também
“O Mauritano” projeta, sem censura, as mais absurdas e cruéis formas de tortura aplicadas aos indefesos aprisionados – especialidade estadunidense ensinada aos torturadores brasileiros quando do golpe de 1964. Externou-se, na tela grande, o que no mundo da humanidade pequena sempre se soube. É que a tortura sempre foi prática comum nas prisões secretas mantidas pelos EUA, como revela relatório apresentado ao Senado estadunidense pela senadora e líder do Comitê de Inteligência, Dianne Feinstein, que apurou as denúncias da prática desse grave crime contra a humanidade. A mesma conclusão apresentada pelos especialistas em direitos humanos designados pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. Denúncias que envolviam o então presidente George Bush e grande parte da sua cúpula governamental.
E não apenas George Bush conhecia os crimes praticados em Guantánamo. Os governantes que ocuparam a presidência estadunidense – republicanos e democratas – não adotaram medidas concretas para desativá-la e cessar a violência institucionalizada. Barack Obama prometeu e nada fez. Donald Trump, apoiador confesso, manifestou-se positivamente às práticas de tortura e à expansão das prisões sigilosas. Joe Biden, não obstante a condenação internacional, mantém a prisão militar, que continua servindo de campo de concentração para aproximadamente 40 acusados de terrorismo. Nela, também em comum, a constatação de que os aprisionados e torturados são árabes e mulçumanos. Nenhum europeu, ocidentalizado ou detentor de poder econômico.
O massacre promovido pelo Estado de Israel contra os palestinos, libaneses e demais árabes, tem em comum com Guantánamo o mesmo ingrediente: a indiferença eurocêntrica/estadunidense. Não se trata, em ambos os casos, do correto combate ao terrorismo, direito universal de todos os povos. Mas, a nefasta ideia supremacista de que parte do mundo é composta por não-gente, pessoas descartáveis, estatísticas sem rostos, corpos destituídos de almas, corações desalojados de sentimentos ou vidas desgarradas de histórias. É que para o outro lado do mundo, os tidos “não-civilizados” não são dignos da civilização que tanto prega em discursos e propaganda, salvo a “hipocrisia piedosa” que diz proteger o mundo de todos os males provocados pela destruição promovida por eles mesmos.
Infelizmente, não se aprendeu com o criminoso holocausto imposto pelo ocidental Adolf Hitler ao povo judeu residente na Europa. Tampouco com a comissão/omissão da comunidade internacional com o que acontecia nos inúmeros campos de extermínio que se espalhavam pelo território da insensibilidade humana, especialmente quando os “aliados da civilização” se recusaram a receber os judeus em fuga, fechando-lhes as fronteiras que os libertaria da morte certa, negando-lhes os salvadores vistos de ingresso, ou mesmo criando os seus próprios campos de isolamento. Não se pode esquecer que os passageiros do navio St. Louis não obtiveram permissão para desembarcarem em Cuba e na Flórida, sendo obrigados a retornar à Europa, um terço deles para a própria Alemanha. Ou que Olga Benário foi enviada do Brasil para morrer no campo de extermínio de Bernburg.
Registre-se que o holocausto não começou com o segregacionista criminoso alemão. As páginas do tempo narram que os judeus sempre foram perseguidos, confinados em guetos, réus preferidos da nefasta Inquisição, expulsos de vários países e com seus bens repetidamente sequestrados. No passado, a parte do mundo que hoje é cúmplice do genocídio dos palestinos, libaneses e árabes também compreendia que as vítimas do nazismo não eram pessoas, seres humanos, rostos, corações, vidas ou histórias. E enquanto essa parte do mundo – achando-se mais civilizada do que outra – continuar exercendo, impunimente, a sua soberba racial, mauritanos, palestinos, libaneses, africanos, latinos, ciganos e tantos outros excluídos permanecerão sendo vítimas dos mais variados crimes.
1