Em um dos capítulos de seu livro Nada menos que tudo – Bastidores da operação que colocou o sistema político em xeque, o ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot conta que o vazamento de uma proposta deturpada de acordo feita pelas empreiteiras investigadas quase implodiu a Operação Lava Jato seis meses após sua deflagração, em 2014. O episódio, segundo ele, ocorreu antes de a operação começar a trabalhar com as delações do ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa e do doleiro Alberto Yousseff, que deram impulso à operação ao apontarem o nome de políticos envolvidos no esquema de corrupção.
“Por desconfiança de que eu estivesse patrocinando um ‘acordão’ com os empreiteiros para abafar a Lava Jato e o prosseguimento das investigações, os procuradores de Curitiba ameaçaram fazer uma rebelião contra mim. Chegaram a avisar um repórter da TV Globo de que pediriam demissão coletiva do caso. Se tivessem levado a cabo esse pedido, teria significado, provavelmente, o fim da Lava Jato – e da minha gestão à frente da Procuradoria-Geral da República”, assinalou Janot no capítulo “O dia em que a Lava Jato quase acabou”.
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Desde a quinta-feira à noite, Janot está sob a mira do Supremo Tribunal Federal por ter afirmado, em entrevista à revista Veja e aos jornais O Estado de S. Paulo e Folha de S.Paulo, que chegou a preparar o gatilho para assassinar o ministro Gilmar Mendes. Ele foi alvo de busca e apreensão, sua arma apreendida e proibido de se aproximar a 200 metros do Supremo e de ministros da corte.
No livro, assinado em parceria com o jornalista Jailton Carvalho, ele afirma que a crise foi contornada e consistiu em um “ponto de virada” para que as relações entre os procuradores envolvidos nas investigações em Curitiba, chefiadas por Deltan Dallagnol, “até então marcadas pela desconfiança”, se tornassem menos tensas. Reportagens publicadas na época apontaram esse clima de rebelião dentro da operação, mas essa é a primeira vez que Janot confirma o relato.
O ex-procurador-geral diz que, no segundo semestre de 2014, foi procurado pelos advogados José Gerardo Grossi e Márcio Thomaz Bastos – o primeiro ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e o segundo, da Justiça – ambos já falecidos. Ele conta que Márcio Thomaz afirmou que falava como representante das empreiteiras investigadas e que as empresas estavam dispostas a deixar de lado suas práticas, de um “Brasil antigo”, e fazer um acordo no qual assumiriam seus erros e o pagamento de uma multa em torno de R$ 1 bilhão.
Janot relata que respondeu que a sugestão feita pelo ex-ministro da Justiça era inaceitável, mas não refutou, de imediato, a possibilidade de um acordo.
Publicidade“Mencionei, porém, três condições básicas, sem as quais nenhuma negociação avançaria: 1) como se tratava de fatos criminosos, os responsáveis deveriam assumir a culpa pelos seus atos ilícitos; 2) como os empreiteiros não tinham prerrogativa de foro no Supremo Tribunal Federal, qualquer tratativa para um acordo deveria ser discutida com a força-tarefa da Lava Jato em Curitiba; e 3) por fim, eu não me comprometeria com qualquer acordo referente a pessoas com foro no Supremo Tribunal Federal”, diz passagem do texto.
“Com relação ao valor da indenização, eu brinquei, mas ao mesmo tempo falei sério: ‘Tem que ser um valor suficiente para pagar a construção de várias penitenciárias no país’. Thomaz Bastos ouviu em silêncio aquelas condições e saiu do encontro dizendo que as levaria ao conhecimento de colegas que trabalhavam no caso com ele”, completa.
Janot afirma que voltou a receber os advogados em audiências e que deixou claro que qualquer acordo precisaria ter como base o reconhecimento de culpa individual e deveria ser negociado, por tratar de pessoas sem prerrogativa de foro, com a força-tarefa da Lava Jato em Curitiba.
Segundo ele, um grupo de advogados das empreiteiras também tentou, sem sucesso, um acordo com a força-tarefa em Curitiba em busca de uma “bandeira branca”. O tiro, porém, saiu pela culatra. Os procuradores deflagraram, no dia seguinte, a fase da Lava Jato que levou alguns dos principais empreiteiros do país à cadeia.
Juízo Final
“No dia seguinte à reunião, a Lava Jato deflagrou, no Paraná, a Operação Juízo Final, a 7ª fase da investigação, em que foram presos dirigentes e executivos de nove empreiteiras com contratos no valor de US$ 60 bilhões com a Petrobras – entre elas, Camargo Corrêa, OAS, Mendes Júnior, Engevix e UTC”, aponta no livro. Algumas semanas depois da Juízo Final, no dia 20 de novembro de 2014, Thomaz Bastos faleceu em decorrência de complicações pulmonares.
Janot narra que dias depois, enquanto almoçava com assessores em uma churrascaria em Brasília, recebeu pelo Whatsapp mensagem do então secretário de Cooperação Jurídica Internacional da PGR, Vladimir Aras, em que ele relatava que o grupo de Curitiba ameaçava renunciar à operação.
“Eles ameaçavam anunciar renúncia coletiva em protesto contra um acordo com as empreiteiras que teria sido referendado por mim, como procurador-geral. Como prova do ‘acordão’, os procuradores tinham uma cópia de uma minuta preparada pelos advogados de algumas empreiteiras. Recebi a cópia da minuta por WhatsApp e fiquei estupefato.”
O ex-procurador-geral afirma que reconheceu uma das cláusulas discutidas com um dos advogados, mas identificou várias “impropriedades”, como a permissão para as empreiteiras desistirem das obrigações previstas a qualquer momento, tornando “sem efeito” eventuais declarações prestadas por seus dirigentes. O texto, de acordo com ele, era dirigido à Polícia Federal, em primeiro lugar, e ao Ministério Público Federal.
Ele relata que, a pedido de Dallagnol, recebeu uma comitiva de procuradores da Lava Jato em Curitiba. “Entraram em meu gabinete em fila indiana, arrastando pequenas malas de viagem, e seguiram para a sala de reunião com semblante fechado. Era como se algo muito grave estivesse prestes a acontecer”, cita, conforme cópia do livro que circula pela internet.
Reação de Curitiba
Segundo o procurador, Dallagnol falou sobre a importância da Lava Jato no país. Coube, nas palavras dele, ao coordenador da operação na capital paranaense, Carlos Fernando Santos Lima, questioná-lo de maneira veemente sobre a cópia de uma transcrição de interceptação telefônica entre um executivo de uma empreiteira e um advogado, feita pela Polícia Federal com autorização judicial.
“Um deles fazia menção ao suposto acordo que estaria sendo costurado por Thomaz Bastos comigo e com o então ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo. O acordo seria o mesmo que, dias antes, o advogado Celso Vilardi me apresentara numa tentativa de colher meu aval a uma das cláusulas. Ou seja, o mesmo acordo que eu, naquele momento, dissera que deveria ser negociado com Curitiba, e não comigo, em Brasília.”
O clima da reunião, de acordo com Janot, ficou tenso. “’Que porra é essa? Eu é que quero que você me explique. Como eu não fui informado sobre meu nome ter sido citado numa interceptação?’, eu disse.” O ex-procurador-geral conta que respondeu aos colegas de Ministério Público Federal em Curitiba que jamais assinaria um acordo naqueles termos, nem daria protagonismo à Polícia Federal, como indicava o texto.
“Foi aí que o ambiente distensionou um pouco. O único que continuou de cara amarrada, sem falar, foi Santos Lima. Eu saí da sala e os procuradores de Curitiba saíram depois para almoçar com alguns integrantes da minha equipe, entre eles Vladimir Aras e Danilo Dias, procurador que integrava a área criminal na PGR. Depois do almoço, Aras e Dias me informaram: ‘Chefe, a bomba foi desarmada. O clima continua tenso, mas eles desistiram da história de demissão coletiva’.”
Desconfiança
Janot narra que um repórter da TV Globo já havia sido avisado por procuradores de que haveria a renúncia coletiva. “Pelo que entendi, seria uma forma de ampliar o impacto da informação e, claro, me deixar numa situação para lá de constrangedora. Se tivesse havido a renúncia, teria sido um tsunami.”
De acordo com ele, o posicionamento dos procuradores era claro. “Avaliaram que um acordo administrativo, com uma admissão de culpa, o pagamento de uma multa bilionária e a interrupção das investigações, seria o melhor cenário para as empreiteiras. Quase implodiram a Lava Jato. Se os procuradores da força-tarefa tivessem apresentado um pedido de demissão coletiva, eu também teria que renunciar. Não teria condições de permanecer no cargo em meio a suspeitas de estar patrocinando uma operação abafa.”
Janot cita novo encontro com advogados das empreiteiras e que novamente recusou a proposta de acordo e os constrangeu dizendo que a força-tarefa em Curitiba reagiria duramente às suas investidas. O episódio, segundo ele, melhorou a relação entre os procuradores da capital paranaense e da PGR, já que, até então, havia um clima de desconfiança entre eles.
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