Marcus Vinicius de Azevedo Braga *
Dia de hoje. Mais um dia no qual o telejornal matinal anuncia uma operação anticorrupção. Policiais, auditores, procuradores. Coletes e motores, malotes e holofotes. Alguns sob rostos escondidos, diante das câmeras e do rubor da face dos telespectadores, que ainda se espantam, sensibilizados.
Dia de amanhã. Pouco se fala do que ocorreu. Sai da manchete para a notinha de pé de página. Restam os aspectos folclóricos. O local onde foi encontrado o dinheiro, prisões de pijama, imagens de malas com cédulas. Um amontoado de atos e fatos que se confunde no imaginário popular, até ser sobreposto pelo próximo escândalo.
O dia depois de amanhã. No microcosmo da organização tomada de assalto, algumas bandeiras precisam ser levantadas, pela força das circunstâncias. Bandeiras indigestas, como as apurações disciplinares decorrentes, processos de ressarcimento de recursos, trocas de chefias, mudanças em rotinas e normativos internos. Afinal, a vida continua, e a população precisa das entregas daquele órgão.
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Impõe-se nesse cenário a discussão de uma agenda de reconstrução, uma pauta no momento pós escândalo, que atenda a requisitos corretivos e preventivos, mudanças na estrutura após a tempestade. Esse é o ponto trazido pelo presente artigo: a esquecida, mas não menos importante, ciência de reconstruir a casa, após ela ter caído.
Assistindo à cobertura televisiva desses eventos, a reação natural do cidadão é pensar que tudo está perdido, em um consenso que ficou popularizado no Brasil como corrupção sistêmica, um tanto diferente do conceito trazido por Rothstein (2007), que entende que essa se caracteriza quando toda a lógica das políticas públicas ocorre em função de facilitar a corrupção, e ainda, no qual o acesso aos serviços públicos só se dá mediante pagamento de propina. Um Estado predatório, na qual não existe prestação de contas dos governantes frente à população. Rege as relações apenas a crença de que todo o sistema é corrupto, e racionalmente não cabe ao cidadão outra forma de atuação, com incentivos para todos agirem de forma corrupta.
PublicidadeCom todo o respeito aos que pensam diferente, mas a análise da conjuntura do Brasil da segunda década do século 21 é diversa desse conceito estrito de corrupção sistêmica, típica de países chamados predatórios (EVANS, 2004), de governos sem a mínima institucionalização ou accountability. O país tem instituições e práticas que nos diferem do que se entende por uma corrupção sistêmica, para além de uma visão ingênua e dissociada da realidade. Tem-se problemas, não há dúvida. Gravíssimos. Em termos de diagnóstico, pode-se arriscar a dizer que temos uma corrupção que ainda se faz presente em níveis indesejáveis, e que se tem concentrações de ocorrências em alguns bolsões, surgidos por um conjunto de circunstâncias locais e temporais.
Vivemos, como trazido por Anechiarico & Jacobs (1996) no estudo do combate à corrupção em Nova York na década de 1980, ciclos de escândalos e reformas, na busca de uma homeostase nos assuntos afetos a accountability ainda não atingida. Um processo de amadurecimento institucional, que nos coloca ainda distante de países que lograram avanços mais sentidos nesse campo, mas longes, da mesma forma, de uma sociedade sem institucionalidade, de forma generalizada.
Essa visão traz uma nova percepção dos escândalos relacionados à corrupção, servindo estes de instrumentos para oportunizar o desenvolvimento de ciclos virtuosos, de legados estruturais que tornem esses eventos menos frequentes e destrutivos para a Administração Pública. Quantas irregularidades se tornaram inviáveis com o surgimento do Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (Siafi) em 1987, ou ainda, com a implementação do Portal da Transparência do governo federal em 2004?
Não é demais lembrar que o impeachment no final de 1992 serviu de impulso para reformas legislativas nas licitações (Lei 8.666/1993), para a criação da Secretaria Federal de Controle Interno (SFC), e que as manifestações iniciadas em 2013 induziram avanços no que se refere à Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013), apenas para ilustrar reações institucionais diante do aumento da percepção da corrupção.
Apenas para exemplificar, tem-se que Melo, Seligman & Delgado (2020), em uma interessante narrativa sobre o reerguimento do Estado do Espírito Santo, vítima de uma crise institucional sem precedentes na década de 1990, aponta que a intervenção externa, de caráter policial, surge indispensável em um primeiro momento, mas a reversão se dá somente com a mobilização política, o envolvimento da sociedade civil, a articulação refletida na esfera legislativa e administrativa. Movimentos geram movimentos.
Para isso, seja no microcosmo da unidade investigada, seja no ambiente institucional que a cerca, é preciso dar visibilidade a uma agenda de reconstrução diante da corrupção. Se esta é um abuso de poder, com desvios de finalidade para atender interesses privados, a reforma estrutural passa pelo receituário de limitação desses poderes, por meio de mais transparência, de mais participação popular e do incremento da fiscalização, bem como do aprimoramento dos controles internos, com o uso de tecnologias, além de aspectos endógenos, como a profissionalização da gestão, encarreiramento (EVANS, 2004), sopesados os custos de transação advindos dessa nova agenda (BRAGA, 2020).
Após o escândalo, é preciso que esteja a postos uma equipe de reconstrução, que reforce os alicerces da boa governança, que abra as janelas da transparência e que repare o teto do sistema de controles internos da gestão, se articulando com o bairro, para entender o que está acontecendo, e que redundou na corrupção manifestada naquela casa. Uma estratégia de reerguimento, que aumente naquele órgão as suas capacidades de accountability, fortalecendo suas estruturas de auditoria interna, ouvidoria, promoção da integridade e de corregedoria, o instrumentalizando para essa nova etapa.
Uma reforma que não se traduza em tutela, que não sufoque a autonomia da organização que precisa se reerguer, na construção de uma nova página naquela trajetória, fortalecendo uma cultura de entrega com integridade. É comum na Administração Pública, como na Casa de Detenção de São Paulo (Presídio do Carandiru), crises acelerarem o fechamento da organização, redistribuindo as suas atribuições, uma situação que, apesar de simbólica, parece ser mais onerosa do que a reformulação frente a crise aqui proposta.
Da mesma forma, o trauma institucional oriundo do escândalo pode induzir, pelo calor dos acontecimentos, a adoção de remédios desmedidos, focados na resposta política à percepção da corrupção, mas que precisam ser sopesados por uma visão mais pragmática, de medidas menos onerosas (BRAGA, 2020), em um controle que proteja, mas que não emperre, e ainda, que se torne sustentável, evitando o ciclo de controles desarrazoados, focados no personalismo e sem lastro estrutural, que promova uma burocracia efetiva e bem qualificada.
O escândalo é uma janela de oportunidade para reformas estruturais, e que pelo seu legado, instaurem ciclos virtuosos. Mas, existe o risco dessa dor assim pungente se fazer inutilmente, sem alterar as regras do jogo, orbitando na superfície das questões, perpetuando ciclos viciosos (ACEMOGLU; ROBINSON, 2012), que resultam em mais escândalos, e minam, em um processo lento e gradual, a confiança do cidadão nas instituições, com efeitos para a própria democracia, base das modernas sociedades ocidentais.
A falta de confiança gera um “efeito cebola”, na qual existe uma demanda crescente por controles e mais controles, onerando a gestão com camadas de salvaguardas dissociadas dos problemas (FUKUYAMA, 2018), aumentando a vigilância, tolhendo a inovação, revertendo ao final em debilidades na gestão, pelas patologias da burocracia. Não pode uma ação do Estado para corrigir mazelas desse mesmo Estado não reverter em confiança institucional, elemento essencial para que esse ciclo virtuoso se instale (ACEMOGLU;ROBINSON, 2012), pois é preciso que a organização, seu ecossistema, enxergue um cenário futuro melhor, o fundamento do sentimento de confiança.
Não adianta vociferar em relação ao gestor ou à classe política diante dos escândalos, e sim entender que é preciso ajustes nos controles políticos e administrativos, fortalecendo a ideia de accountability, de gestores responsáveis e que podem ser responsabilizados. A agenda de uma accountability de reconstrução traz para a pauta essa visão sistêmica desses problemas, norteando reformas estruturais que mitiguem, de alguma forma, as questões subjacentes ao fenômeno da corrupção.
O ânimo investigativo e punitivo faz parte das modernas democracias, em especial face à complexidade do fenômeno da corrupção, dado que é um negócio de vultosos ganhos e que precisa ter respostas que imponham a este um grau de alto risco. Mas é preciso lembrar o ânimo restaurativo, pouco debatido na imprensa, mas que tem uma ciência própria e específica de retomar as rédeas daquele órgão capturado, e que permite avanços nas salvaguardas que revertem em melhores políticas públicas, devolvendo aquele que foi o maior prejuízo causado pela corrupção.
* Doutor em Políticas Públicas pela UFRJ.
Referências:
ACEMOGLU, Daron; ROBINSON, James A. Por que as nações fracassam: as origens do poder, da prosperidade e da pobreza. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.
ANECHIARICO, F.; JACOBS, J. B. The pursuit of absolute integrity: how corruption control makes government ineffective. Chicago: The University of Chicago Press, 1996.
BRAGA, Marcus Vinicius de Azevedo. Vale quanto pesa: um estudo sobre os impactos do controle na gestão. Belo Horizonte: Editora Forum, 2020.
EVANS, Peter. Autonomia e parceria: Estados e transformação industrial. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004.
FUKUYAMA, Francis. Ordem e decadência política: da revolução industrial à globalização da democracia. 1. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2018.
MELO, Carlos; SELIGMAN, Milton; DELGADO, Malu. Decadência e reconstrução: Espírito Santo- Lições da sociedade civil para um caso político no Brasil contemporâneo. São Paulo: Editora BEI, 2020.
ROTHSTEIN, Bo. Anti-Corruption-A Big Bang Theory, Paper presented at the Conference on Corruption and Democracy organized by the Centre for the Study of Democratic Institutions. Vancouver: University of British Columbia, June 8-9, 2007.
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