André Sathler e Malena Rehbein *
Muito se tem falado sobre transformações advindas das novas mídias, sobretudo as redes sociais, inclusive no tocante à viabilização de um sistema democrático mais participativo e conexional, com consultas constantes à população e debates inclusivos jamais vistos ou experimentados em épocas anteriores. As últimas eleições comprovaram a tendência a um ativismo digital intenso, envolvendo amplamente o uso dos recursos das novas tecnologias, sendo as redes sociais a nova fronteira da confrontação política, capaz não só de difundir informações (da mídia de massas ou não), mas também de reinterpretá-las e abri-las a novas vozes, ou seja, inserindo novas fontes sociais.
O fenômeno, ainda muito recente para que se afirmem conclusões definitivas, provoca algumas reflexões. Primeiro, é notório o descasamento de velocidades entre o mundo digital e o mundo real. Teóricos como Baudrillard chamam o fenômeno de paralaxe: no mundo digital tudo acontece mais rápido, mas o cérebro processa a experiência como algo contínuo, enquanto que no mundo real tudo se move mais devagar. Estando em qualquer um dos mundos e observando o outro, o que se vê é somente um borrão (como quando se está andando de carro e se olha para o chão da via passando ao lado da janela).
Leia também
Esse descasamento de velocidades gera alguns efeitos curiosos, como a sensação de que se algo aconteceu no mundo digital, necessariamente vai acontecer no mundo real. Os ativistas de poltrona, nome popularizado entre teóricos americanos que discutem a questão, assinam rapidamente uma petição online, dando-se por satisfeitos e ignorando completamente o assunto daí em diante. Defensores de um candidato qualquer são rápidos e não pensam muito para postar questões relativas à candidatura, mas são incapazes de entregar um folheto para um colega de trabalho.
Uma grande diferença fica então clara entre esses dois mundos (o digital e o da política real): o timing de seus acontecimentos. Antes da internet, estudiosos da comunicação e política reclamavam que a mídia de massas, autointitulada representante da sociedade, exigia soluções no seu timing, ou seja, no deadline diário, coisas que o mundo da política nem sempre consegue fazê-lo, ou muitas vezes o faz de qualquer forma para atender um apelo midiático. Se, por uma lado, as redes sociais acabam por menorizar o papel mediador dos meios de massa, inserindo e ampliando vozes da sociedade que não participam do noticiário; por outro transferem para o ambiente virtual o mesmo timing da imprensa, por exemplo.
As estratégias de governo colaborativo, por outro lado, vêm para ajustar essa diferença de timing, já que todo processo deliberativo é trabalhoso, mesmo online. Interfaces colaborativas digitais tendem, assim, a facilitar uma consonância entre o engajamento social e sua possibilidade de interferência na esfera política. Se isso de fato acontece, já é outra coisa… Há experiências interessantes de colaboração mundo afora e mesmo no Brasil (como a maratona hacker que aconteceu recentemente na Câmara dos Deputados), mas é pouco quando comparado aos maiores usos das redes sociais, como o ativismo de poltrona, citado anteriormente, ou o desabafo em massa. Ambos não são ruins e têm papel importante na sociabilidade, mas acabam contribuindo para o “gap” entre as esferas política e virtual.
As diferenças de timing também interferem na significação do que é produzido no ambiente da net. As redes sociais são parte do ciberespaço, notoriamente um espaço semântico e, como tal, local da performance pura. Afirmar o ciberespaço como performance é entender que ele só existe no momento em que alguém o está acionando, o está executando, o está submetendo a uma atualização específica. A rede impõe seu próprio ritmo e suas próprias regras, a ponto de não se saber mais quem está usando e quem está sendo usado. As pessoas estão cada vez mais confortáveis como habitantes de mundos simulados no ciberespaço e essa simulação pode funcionar como um mecanismo exponencial de alienação, agora hipnótico-sensorial. Para que as redes sociais sejam espaços genuínos de exercício da política e construção da cidadania, as pessoas precisam ter noção desse caráter de simulação e descolamento do mundo real, de modo a que possam manter a cabeça nas nuvens, mas mantenham os pés no chão.
Uma segunda reflexão tem a ver com o modo de funcionamento dos bots nas redes sociais. O ciberespaço não é estático nem insensível às demandas do navegante. Os robôs da rede capturam as informações sobre a navegação passada e alteram, a partir dessas, as condições do mercado informacional. Esses robôs conduzem a uma esterilização da diversidade, ao promoverem uma exacerbação da percepção seletiva, propiciando sempre mais do mesmo. Como ocorre caracteristicamente nos processos recursivos de orientação positiva, o uso recorrente das redes sociais leva ao efeito de tunelização, ou restrição severa dos dados admitidos como válidos pelos sistemas perceptuais – uma percepção estreita. Quem gosta de um candidato ou partido vai enxergar cada vez mais posts, notícias e anúncios sobre aquele candidato ou partido. Ainda que haja, e obviamente há, potencial para justamente o contrário: ampliação de vozes e diversificação de discursos, mesmo dentro do que se considera solidariedade transversal, feita por temas e atemporais.
Terceiro, um fenômeno já amplamente discutido diante da Web 1.0, que se agudiza com as redes sociais, é a overdose de informação. Circulam, instantânea e difusamente, vídeos, textos, fotos, imagens, grafismos, sensações táteis, compondo um rico ecossistema sensorial-cognitivo, desfrutado por aqueles dotados dos mecanismos de entrada/saída adequados. Tudo é digitalizável, portanto, tudo é circulável. Afogado em informações, o indivíduo se torna progressivamente menos capaz de efetuar julgamentos de valor adequados. Repete-se aqui o mesmo fenômeno preocupante das teorias de comunicação de massa: a antiga disfunção narcotizante.
Finalmente, alerta-se para o fato, bastante evidente, que as redes sociais ampliaram sobremaneira a repercussão de boatos e mentiras. Olhando-se mais atentamente para os padrões virais de difusão, percebe-se que se trata somente de uma exponenciação do tradicional boca a boca (interação face a face), transubstanciado em um mouse–to–mouse (interação mediada), porém com alcance tremendamente superior, seja em termos de quantidade de pessoas alcançadas, seja em termos de velocidade de disseminação. Não à toa, pesquisas recentes que revelam o potencial de crescimento de consumo de informação pela net também mostram que as pessoas continuam confiando mais em informações dos antigos jornais impressos. Na inexistência de referências estáveis de verdade, as pessoas apelam ao imediatismo da timeline para se reconhecer, em face de si mesmo e de seus amigos, na busca ansiosa de alguma sensação de pertencimento.
Qual será o real papel das redes sociais, ou suas sucessoras, na política em um futuro não tão distante, dependerá da compreensão de suas potencialidades técnicas e suas implicações sociais, inclusive suas formas de absorção e uso. O cenário hoje é de não respostas, inclusive para as questões colocadas aqui, já que no que Baumann chama de modernidade líquida, tudo se transforma continuamente. Há potenciais paradoxais, como a ampliação e restrição, ao mesmo tempo, das vozes participantes do debate. Há pesquisas no mundo todo que reforçam, a cada momento, um dos lados de cada problema. E isso acontece justamente porque não há resposta absoluta para os resultados de atuação e consumo de informação e debate por meio das redes sociais. Nunca houve potenciais em tão grande número e tão diversos em um tipo de ambiente com potencial de esfera pública planetária. Só a decantação, no tempo, talvez traga tendências mais fortes de uso e consumo, mas deve-se avaliar o meio com o mesmo olhar de suas características múltiplas: sabendo-se que não há verdades absolutas e científicas perenes e que tudo pode mudar no click seguinte.
* André Sathler é doutor em Filosofia e Coordenador do Mestrado Profissional em Poder Legislativo da Câmara dos Deputados e Malena Rehbein é jornalista e doutora em Ciência Política, docente do Mestrado Profissional em Poder Legislativo da Câmara dos Deputados .