José Rodrigues Filho *
O projeto de lei que instituiu o marco civil da internet foi sancionado pela presidente Dilma Rousseff, durante a abertura do encontro da NetMundial, realizado em São Paulo, nos dias 23 e 24 de abril, com a presença de representantes de cerca de 80 países. De um lado, o Brasil poderia dizer: vejam o nosso marco civil da internet e que os governos de seus países deveriam fazer o mesmo. Do outro lado, os Estados Unidos satisfeitos por terem conseguido abraçar o Brasil em seus esforços políticos de divulgar o discurso corporativista de Multistakeholder. Para alguns, era possível dizer: tudo está muito bem, vamos. tomar caipirinhas. Para o ICANN, instituição americana responsável pela governança atual da internet, todos estavam felizes, considerando que estavam convergindo para os valores de um modelo de governança, denominado de Multistakeholder, ou seja, o modelo de governança corporativa americano. Mas, no final do evento, como era de se esperar, chegou-se ao momento desagradável. Nem os Estados Unidos, nem a União Européia, defensores de uma governança corporativa da internet, que menospreza os cidadãos-usuários, aceitaram abraçar a idéia de neutralidade da internet, ponto forte de nosso marco civil. Conforme foi noticiado, se quesermos mais internet e mais democracia, devemos esquecer NetMundial e ICANN.
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Apesar do discurso corajoso de nossa presidente, em favor da liberdade, da neutralidade da internet e contra a espionagem em massa, não houve impacto no resultado final da NetMundial. Comenta-se que a versão final do documento sobre os princípios da governança da internet é pior do que versões anteriores, razão pela qual deve servir de alerta para os cidadãos do mundo inteiro. Sem conhecer os fatos, torna-se difícil comentar sobre as razões pelas quais a presidente Dilma aceitou que o Brasil fosse um dos co-organizadores do evento, juntamente com ICANN. Pela sua história e como vítima de um processo de espionagem criminoso, será que Dilma se rendeu ao discurso Multistakeholder, ao lado dos Estados Unidos?
Comenta-se que, com base neste discurso, nada de concreto aconteceu nos últimos 15 anos durante as reuniões Multistakeholders, a não ser a observação de que, ao longo dos anos, a tecnologia tem se voltado contra os cidadãos-usuários, enquanto ferramenta de espionagem, controle e opressão. O modelo multistakeholder é esmagado pelas botas da NSA, Google, Facebook, Apple e muitos outros que, de forma unilateral, não desejam moldar a tecnologia para beneficiar os cidadãos. Infelizmente, o discurso multistakeholder é o preferido por boa parte dos técnicos de tecnologia de informação, que enxergam apenas as questões técnicas da tecnologia, relegando as questões de contexto e outras questões sociais. Este é o modelo que inclui as principais corporações da internet, o governo dos Estados Unidos e seus aliados nas comunidades técnicas e parte da sociedade civil. A questão que se levanta é a seguinte: neste modelo, quem são os representantes dos interesses públicos, quando as corporações, que dominam os eventos, estão defendendo seus próprios interesses?
Portanto, o modelo multistakeholder é visto como a transformação do modelo econômico neoliberal, responsável pela devastação da tragédia humana no mundo inteiro, mas celebrado por alguns por conta da dominação da internet pelos Estados Unidos, suas corporações e um limitado número de países aliados, responsáveis pela implementação de um modelo de governança, que abre espaços para a participação de stakeholders do setor privado, mas nenhuma participação para stakeholders interessados no interesse público. Similar ao modelo econômico neoliberal, o modelo multistakeholder não permite uma regulamentação externa para proteger o público e seus interesses. Portanto, estamos diante de um modelo que prioriza a privatização da governança, com a participação de alguns membros da sociedade civil que, muitas vezes, depende de viagens pagas pelas grandes corporações, o que dificulta se ter a internet como um bem social, diante da dominação das grandes corporações, reforçada pelos processos do modelo multistakehlders.
Os cidadãos-usuários brasileiros receberam o primeiro golpe durante as discussões do marco civil no Congresso Nacional. Boa parte da classe política, tanto aliada do governo como de oposição, rejeitou a ideia do projeto inicial apresentado pelo governo que defendia que os dados de cidadãos brasileiros fossem armazenados no Brasil. De nada valeram as denúncias de Edward Snowden de que até a nossa presidente era espionada. As elites políticas se mantiveram favoráveis ao status quo, enquanto defensoras das grandes corporações, inclusive internacionais, parecem pouco interessadas na segurança dos usuários e, consequentemente, na segurança do país como um todo. Se não for criada uma estrutura de segurança dentro do nosso país, dificilmente isto vai acontecer se for feita noutros países. Pode até ser um processo mais caro, mas, em se tratando de melhor segurança, temos que pagar um preço por isto. Porém, para viabilizar a aprovação do projeto, o governo abriu mão de um dos pontos mais importantes do projeto inicial, referente ao armazenamento de dados no Brasil de usuários brasileiros.
PublicidadeEm se tratando de armazenamento de dados, vale a pena mencionar recente pesquisa realizada na Europa, após as denúncias de espionagem e que tenta mostrar o comportamento e atitudes dos executivos das grandes corporações. Mais de 90% dos executivos de países como Alemanha, França, e Inglaterra demonstraram ser favoráveis a que os dados de suas organizações fossem mantidos dentro do próprio país e não mais em organizações dos Estados Unidos. Isto demonstra a grande preocupação com a segurança cibernética, que não parece ser o caso no Brasil, como ficou demonstrado quando da votação do marco civil da internet, que para ser aprovado levou o governo a retirar do projeto inicial o tópico inerente ao armazenamento de dados de cidadãos brasileiros. Por que manter dados dos cidadãos brasileiros em banco de dados das grandes corporações americanas, dentro dos Estados Unidos, diante do que estamos percebendo? O que nos alegre foi o recente depoimento, segundo a imprensa, do ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, de que vai lutar para obrigar empresas de internet a manter dados de cidadãos brasileiros no Brasil.
Considerando que a atual governança da internet resultou num processo criminoso de espionagem, sem que nada tenha sido comentado no documento final da NetMundial, apesar do discurso inicial da presidente Dilma, o tempo é que vai nos dizer o que vai acontecer com o marco civil da internet no Brasil e no exterior. O significado da participação do Brasil como co-organizador da NetMundial, ao lado dos Estados Unidos, não está clara. Porém, pelo que se observa, o país foi realmente convencido pelos Estados Unidos a se engajar no modelo Multistakeholder, que, como vimos, menospreza os cidadãos, deixando de discutir o que lhes interessa e o que é de interesse público.
* Professor da Universidade Federal da Paraíba. Foi pesquisador nas Universidades de Harvard e Johns Hopkins (EUA). Mantém o blog http://jrodriguesfilho.blogspot.com/.
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