José Rodrigues Filho*
Uma das decisões mais importantes da Câmara dos Deputados no corrente ano diz respeito à determinação de que, a partir das eleições de 2014, 2% das urnas eletrônicas devam ter dispositivo para permitir a impressão do voto, garantindo uma futura auditoria do voto eletrônico. Apesar de atrasada, essa decisão visa atender a preocupações com a falta de segurança do voto eletrônico, segundo consenso da comunidade científica nacional e internacional. Enfim, foi uma decisão acertada e elogiável. É lamentável que tal decisão tenha passado despercebida pela imprensa da elite dominante, como sempre foi a discussão do voto eletrônico no Brasil.
A decisão acima mencionada está relacionada com um dos assuntos bastante discutidos na literatura nos dias de hoje – a confiança e a desconfiança das tecnologias. A confiança nos dias de hoje é vista como um negócio, que interessa ao setor de tecnologia de informção. Embora venha sendo estudada há muitos anos, nos campos da filosofia, sociologia, psicologia, economia e administração, não existe ainda uma definição universalmente aceita do que seja a confiança. Nos campos da economia e administração, a confianca visa à maximização de lucros. Nesse caso, tenta-se se criar confiança em produtos como forma de multiplicar lucros.
No caso da computação e da tecnologia de informação, implica ter tecnologias confiáveis. Esse discurso interessa aos vendedores de tecnologia. Portanto, se não houvesse confiança nas urnas eletrônicas por parte do eleitorado brasileiro, possivelmente elas não estariam sendo mais utilizadas. Contudo, a grande questão é a seguinte: como o povo brasileiro adquiriu essa confiança? A quem interessa o discurso da confiança? Quem foi o responsável pela institucionalização do voto eletrônico no Brasil? Como se ter confiança no que não se conhece?
É preciso esclarecer que confiança ė uma relação entre pessoas e não entre pessoas e produtos. Numa relação de confiança entre pessoas e produtos, a confiança se torna uma mercadoria. Nesse caso, a confiança é manipulada, fabricada e criada como forma de opressão e abuso de poder. Em resumo, a confiança é criada e manipulada por trás de portas fechadas para atender a interesses corporativos. Tudo indica que a Câmara dos Deputados quis dar uma resposta a esse discurso de confiança manipulada, fabricada e criada pelos opressores no poder, ouvindo as vozes da desconfiança, incluindo aí especialistas nacionais e internacionais, que questionam a tecnologia atual de voto eletrônico.
A tecnologia de informação tem reforçado o prestígio e poder de algumas instituições públicas, a exemplo da própria Justiça eleitoral. Isso tem se dado muitas vezes em detrimento da cidadania. Nos últimos tempos, investiu-se mais na tecnologia do voto eletrônico do que em muitos programas sociais, com efeito muito mais positivo para a população brasileira, sobretudo nas áreas de educação e saúde. Durante alguns anos, por exemplo, gastou-se mais com a tecnologia do voto eletrônico do que com todos os hospitais de ensino do país, que prestam serviços essenciais à população carente. A suposta vantagem do voto eletrônico é que possibilita apresentar o resultado de uma eleição em poucas horas. Em termos de democracia, isso não é uma vantagem. O que o povo brasileiro precisa, de fato, é participar das decisões políticas do país e não saber o resultado de uma eleição em poucas horas.
A confiança dada a essas tecnologias precisa ser questionada. Durante anos a Justiça eleitoral no Brasil desenvolveu uma campanha de marketing para institucionalizar a confiança nas urnas eletrônicas. Vários foram os pronunciamentos de representantes da Justiça eleitoral afirmando que as urnas são seguras e confiáveis, mesmo contrariando a literatura sobre segurança e confiança nas tecnologias de informação. A questão de confiança nas urnas eletrônicas precisa ser analisada no Brasil de forma aprofundada e não de forma instutucionalizada, como aconteceu. Nesse caso, é preciso analisar a questão de confiança do ponto de vista individual e institucional. O cidadão brasileiro confia nos seus amigos e seus familiares, mas, muitas vezes, nao confia nas instituições. A corrupção, a impunidade, o abuso de poder, a violência, o crime, as desigualdades e outros interesses, inclusive corporativos, precisam ser considerados numa análise da confiança no voto eletrônico no Brasil. A questão é complexa e nao pode ser resolvida pelas vozes do abuso de poder ou do autoritarismo.
É lamentável que o Congresso Nacional tenha adiado a questão para se testar o voto eletrônico no Brasil só em 2014. Isso demonstra a falta de pesquisas no país sobre o tema, de modo a orientar a classe política brasileira a tomar decisões. Um tema dessa relevância exige alguma forma de conhecimento, que, infelizmente, nao foi produzido no Brasil. O voto eletrônico sempre foi um mistério em nosso país. O discurso de confiança é da Justiça eleitoral e não da voz do povo ou do conhecedor da tecnologia, ou ainda proveniente de pesquisas. Gastou-se muito com a tecnologia de voto eletrônico, mas nao existem pesquisas sobre a sua utilização, a não ser para constatar que se trata de uma tecnologia de elevado custo e de pouco significado para a democracia e a sociedade. Talvez por isso as democracias tradicionais não o utilizem. Temos o voto eletrônico, mas a compra de votos, por exemplo, aumentou no país.
A Justiça eleitoral teme a utilização do voto impresso, já que provavelmente ela impedirá a divulgação do resultado das eleições em poucas horas. Isso significa perda de prestígio e poder e também aumento da desconfiança na tecnologia. Isso vai se dar talvez por conta de defeitos técnicos e não de atos corruptos. A experiência em outros países já mostrou as dificuldades de se operacionalizar o voto impresso. Nao se defende aqui a volta ao passado, mas é possível que a tecnologia de voto eletrônico usada no Brasil não seja a mais apropriada, sobretudo para um país em desenvolvimento. Também não se pode continuar utilizando uma tecnologia que não oferece possibilidades de auditoria. O país já deveria ter testado outras tecnologias, inclusive a de contagem de votos pela tecnologia de código de barras. O mundo desenvolvido está à espera de uma tecnologia de voto eletrônico confiável.
* Professor da Universidade Federal da Paraíba, foi pesquisador nas universidades de Harvard e Johns Hopkins. Atualmente, é professor visitante no Departamento de Telecomunicações e Estudos da Informação da Michigan State University.
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