Admitir que um amigo como Paulinho morreu é algo mais comprometedor do que apagar parte da memória, é apagar nosso itinerário, a rotina, as rondas e os bares que continuam existindo no mesmo lugar, apesar do sumiço. Admitir a morte de um amigo tão próximo significa também riscar do mapa os outros amigos que dividíamos nem sempre em pacífica convivência, fica esquisito. Falta o acordo, e falta o desacordo. A conta não fecha; admitir que um cara como Paulo de Tharso não mais existe é, entre milhares de outras coisas, acreditar na piada que ele sempre contava: “estou morrendo”. A graça da piada era ridicularizar a ameaça dele, e aí o puto morre e estraga a própria piada.
Inadmissível.
A morte consta, mas não fecha. Como assim morreu? Admitir a morte de um cara tão presente como Paulinho é a mesma coisa que dizer que ele não existiu e que não só eu, mas todos os que privaram de sua amizade, jamais existiram. De certa forma, é a mesma coisa que admitir que também estamos mortos, ou, numa hipótese mais excêntrica, reconhecer a morte de um amigo tão presente, é algo mais grave do que eliminar a hipótese de que ele tenha existido, ou seja, é eliminar a hipótese de que – ainda – estamos vivos.
Nesse caso, admitir que não estou/não estamos vivos é diferente e muito mais grave do que admitir a hipótese de que Paulinho está morto (ou a hipótese de que todos estamos mortos). Uma vez que a primeira injunção anula e compromete aquilo que viria em seguida, a suposta morte do amigo. Vale dizer: se Paulinho morreu, eu simplesmente não conseguiria levar esse raciocínio adiante. Façam as contas, é matemática pura.
Ora, se eu, aqui e agora, uso meu laptop para discorrer sobre o amigo morto, não existe a possibilidade de ele deixar de ser sujeito e ao mesmo tempo objeto do que escrevo, logo estamos vivos. Porque também sou sujeito e objeto do que escrevo. Pense bem, amigo zumbi paulistano: se voce quiser traçar um belo sanduíche de pernil, basta ir até o Estadão e pagar dez reais, isto é, somos aquilo que pensamos ser aqui e agora desde que tenhamos dez reais no bolso e consigamos acreditar que, entre outras coisas, estamos vivos – o mesmo raciocínio (repito) vale para o entorno, para os bares, os amigos, as mulheres que nos abandonaram e o pão na chapa, vale a mesma coisa para o último número do trapezista antes de despencar em vertiginosa queda, para o choro falso do palhaço e pro abraço de despedida. Porra, Paulo!
Ando com a pulga atrás da orelha. Paulinho não foi o primeiro a ter a derradeira conversa comigo. Tomamos um Mosteiro horroroso no Marajá, e por volta das 23 horas o deixei na porta de casa. A última coisa que me disse foi: “Você faz falta, volte sempre”. Aqui estou. Aliás, já é o terceiro que involuntariamente encaminho pro outro lado. Talvez daí o vínculo que me permite especular, e desacreditar na morte: logo eu o mestre da ante-sala?
No dia seguinte ele estava dentro de um caixão, no palco do teatro, foi bonito, triste, inacreditável.
Bem, eu dizia: ou admitimos que estamos vivos nessa condição, digamos, de suspensão, ou admitimos que somos resultado de uma coisa alheia que anima nossas carcaças, quase independentemente de nossos desejos.
Confesso que estou mais inclinado a admitir o alheio. Se for pelo alheio, a imagem que me reflete no espelho é o meu fantasma. Se voce quiser estender esse raciocínio ao entorno, verá que tudo não passa de uma ficção precária: as notícias que você lê nos jornais, o bom dia que você dá ao porteiro do seu prédio – seu voto, o orgasmo da mulher amada e o velório do amigo querido. Tudo é ficção, menos o mensalão.
A diferença é que algumas ficções são assumidamente irreais e, outras, paródias de realidades fugidias e igualmente intangíveis . Todavia, o fato de algumas ficções serem assumidamente irreais não as qualificam como melhores e/ou superiores às outras – pretensamente documentais.
A vida e a morte giram nesse diapasão: o atestado de óbito nada mais é que um RG endereçado aos tais “entes queridos”. A morte é deles, e não de quem morreu. Creio, portanto, que é o talento do ilusionista que faz toda diferença. Quando o mágico consegue conciliar ou misturar esses dois elementos, vida e morte, o iludido transcende às condições de crédito e descrédito. Sugiro um teste. Aqui no Rio de Janeiro existe um Arco. Uma espécie de túnel do tempo. Localizado à margem da Praça XV, do lado oposto ao Paço Imperial.
O Arco do Telles. Faz uns três anos, eu, Edinho e o falecido (?) Paulo de Tharso adentramos nesse local. Antes disso, passamos numa charutaria e o xarope, aqui denominado falecido, tomou três doses de conhaque, comprou uma bengala inútil, cantou a mocinha do caixa e – pra fazer valer a praxe – azucrinou as idéias do Edinho. Como assim? Morreu?
Ao teste. Fiz o mesmo percurso semana retrasada, dessa vez acompanhado por mr.Lee. Foi ele quem tirou essa foto.
O sujeito à esquerda, que pisa na própria sombra é o meu fantasma. Porém um fantasma feito de carne e osso, e mais uma carequinha revelada pelo exímio fotógrafo, mr. Lee. Essa mesma massaroca esteve em Montevideo faz um ano e meio. O alheio o manipulou. Tanto no Uruguay como no Rio de Janeiro tive um pressentimento que estranhamente coincidiu com aquilo que sinto aqui e agora.
Nem sempre acontece isso, algo ou a força que me animava nas duas ocasiões me dizia o seguinte (tomem como um disparate): “No ventre de outras mulheres achei suas mentiras. Quem mente para elas agora sou eu. Sem querer, uso do seu repertório e trago você para mais perto de mim. Pode enganar a quem quiser, você bem sabe, meu amor, que sua trapaça engana somente aquele que finge amá-la, Kensington 1712”.
Kensington, 1712? Pirou? O que o ventre da mulher mentirosa tem a ver com o distrito londrino e com as calças? Aparentemente nada. Em comum, apenas o eco do mágico manipulador. Mas digamos que, semana retrasada, no Rio de Janeiro, eu era o responsável pelo sopro de vida que conduzia a massaroca de carne noite adentro. O Arco do Telles é um ventre. Ora, eu quem animava o fantasma de carne e osso. A foto me entrega, a partir da carequinha. Todavia, no Uruguay, em Ciudad Vieja, o manipulador era o alheio – por pouco não me despeço de mim mesmo, e emborco sem ter conhecimento de minha calvice.
– Por supuesto, mr.Lee, usted também é um fantasma, pode acreditar que sim.
E digo mais uma coisa: talvez, daqui alguns anos, eu seja parido em Kensington de um ventre disparatado, mentiroso e corrompido. A única chatice é ter de esperar chegar o ano de 1712, que parece tão distante. Talvez nesse dia eu morra para o mundo e renasça para a vida eterna. Talvez eu seja engolido. Talvez tope com Paulinho ao dobrar a esquina iluminada da foto, à esquerda – estão vendo? – logo depois do saco de lixo. Da próxima vez portador de uma vasta cabeleira, e quiçá menos infeliz. Quem sabe, mr. Lee?