Uma mistura de incredulidade com espanto. Muito engraçado e muito esquisito. Fazia um tempão que o inusitado não me pegava no contrapé. Tô falando do cartunista Laerte, o novo “travesti” do pedaço (Ilustrada, FSP, 4/11).
Laerte travesti? Não é tão simples assim. Até agora, não consegui desatar o nó. O repórter Ivan Finotti fez todas as perguntas cabíveis e disponíveis no mercado, e eu – confesso – não conseguiria perguntar nada melhor. Diante das respostas do Laerte, as coisas ficaram mais esquisitas ainda. Considerei seriamente a hipótese de que é mais fácil arrumar um bom discurso do que dormir João e acordar Jéssica. Tendo uma boa justificativa, o sujeito pode matar seu vizinho ou conquistar o amor de sua vida. Se ele tiver um bom argumento, pode enganar e manipular a si mesmo, e ao entorno – seja para o bem ou para o mal. Vejam o que aconteceu com Georginho. Ele devia ser uma linda criança (apesar das orelhas de abano) e acabou virando presidente dos EUA. O Eurico virou Miranda, e assim por diante. Isso vale para os lugares, as cidades e para a música também. Se o Chico disser que o rap é a evolução da bossa nova, quem é que vai dizer que não é? Quem é que vai ser louco de afirmar que Leite derramado é tão bobo que podia ser uma minissérie da Maria Adelaide Amaral ou, na melhor das hipóteses, um enredo de escola de samba? Acho que só eu mesmo. Não só afirmei, como acredito e tenho provas – basta dar uma googada: “Festa na Senzala + Chico + Mirisola”.
Voltando. Se o sujeito tiver um bom papo, ele convence qualquer um em qualquer época, circunstância e lugar, e o 171 pode ser aplicado tanto em Mogi-Guaçu, terra natal de Mayara Magri, como nos ex-cafés existencialistas de Paris. Vejam só. Meu amigo Nilo chegou da terra de Toulouse-Lautrec e me garantiu que aquele lugar, antes de ser um cabaré, e antes de o Marlon Brando dançar seu último tango com Maria Schneider, era uma várzea. Faz sentido.
Quem é que vai dizer que o Laerte não é mais macho que o Angeli e o Tavinho Frias juntos?
O impressionante, no caso do Laerte, é que ele não armou nenhum discurso, portanto esqueçam os parágrafos que escrevi acima. E tem mais. O mais genial dos quadrinistas brasileiros, ao contrário de todas as evidências e expectativas, também não enlouqueceu. Não bastasse, tem uma explicação plausível para o fato de que, em primeiro lugar, não sente tesão em se vestir de mulher e, depois, está muito à vontade e feliz da vida nesse papel. Impressionante, né? Sabem por quê? Porque não se trata de “uma sacanagem” nem tampouco de um “papel” (isso que me deixou confuso).
Segundo o quadrinista, trata-se de uma questão intelectual, política, de gênero. O blush é apenas um detalhe. Só que essa condição, ou melhor, essa personagem não foi criada num laboratório nem na clínica do dr.Hollywood, mas na cabeça do próprio Laerte. Como se ele/ela fosse um avanço tecnológico do macho e da fêmea – uma vez que ele/ela pode ser os dois negando ambos. Animal político, Laerte sabe que jamais será uma mulher (deixa isso claro na entrevista) e também não precisa mais ser homem. Só não me convenceu quando fugiu das palavras e renegou sua condição de travesti: homem que – segundo Aurélio Buraque de Holanda que não entendia nada dessas viadagens – “veste roupas do sexo oposto”. Tirando isso … Caramba! Vai ser evoluído assim lá no Largo do Arouche, meu!
Noves fora, ele/ela ficou parecidíssimo com minha tia Neném. E é aí que mora o perigo. No olhar dos outros. E o nome disso – também – pode ser preconceito.
Bem, e daí? E se for preconceito? Se fosse gripe, eu tomaria uma caipirinha. Mas como se trata do Laerte vestido de tia Neném, prefiro ser acusado de Neandertal do que ser acusado de “moderno” pela Muchacha*, e fingir que não aconteceu nada. Mas, pensando bem, no caso do Laerte não é só meu preconceito, não.
Tia Neném mora em Bragança Paulista. O corte de cabelo chanel, os óculos de aro fino, aquele colar meio indígena de professora aposentada, a sombra do bigode e a boquinha de chupar ovo cozido (também lembra um pouco a falecida dona Ruth Cardoso…). bem, o conjunto da obra é tia Neném cuspida e escarrada. A véia é especialista em empenhar novenas para Santa Rita de Cássia e fritar bolinhos de chuva – fã do Padre Marcelo, da Palmirinha e do Agnaldo Rayol.
Nesse ponto – desconfio – encontra-se a subversão do Laerte. Porque se ele me disser que não tem subversão nesse troço, bem, aí sinceramente eu não sei mais o que pensar.
Creio que a subversão substituiu o sexo no caso dele. A meu ver, devia substituir milhares de outras coisas, mas deixa pra lá. A subversão: um estágio além do sexo. A partir daí, fui a campo. Consultei amigos experts no assunto: Bactéria, Pascotto e Paulo Stocker, sendo que esse último também é quadrinista e, nas horas vagas, atua no mundo fashion. Stocker é o criador da mini-burca. Agradeço a boa vontade que tiveram comigo. Aprendi que Laerte é mais do que um verbete no dicionário. Trata-se de um avanço tecnológico no gênero, digamos assim. Entendi que o cross-dressing, é uma modalidade de “travestismo” (ou seria transformismo, Pascotto?) segundo a qual o cara que se veste de mulher não associa o ato ao fato. Para ser mais grosseiro, diria que é um estado de espírito que não inclui necessariamente a ereção. Seria a tal da estrutura (ou a “justificativa”) que consolidaria qualquer discurso, a favor ou contra. Ou seja, fulano mete uns bobes na cabeça e um dildo** no rabo e vai comprar verduras na feira como se a inflação tivesse acabado no Brasil. O prazer dele (que aparentemente nada tem a ver com sexo…) é ser chamado de gostosa pelo verdureiro. Palavras do Laerte: “Quando estou na rua de saia e passa uma kombi e o cara faz ‘fiu-fiu’ para mim, ele não teve dificuldade nenhuma em fazer aquilo. E eu também recebo de forma muito clara”.
Um dado importante: na grande maioria dos casos, o cross-dressing existe nas esferas virtuais e privadas e em clubes fechados, um dos quais Laerte é associado, o Brazilian Cross-dresser Club. Creio que as meninas do clube, juizes de direito, monges e executivos, empresários do agro-negócio e do ramo de auto-peças,e etc – morrem de vontade, mas jamais iriam dar colher de chá para os motoristas de kombi os assediar. No entanto, Laerte, o mestre da ilusão, escancarou a maquiagem e deu um passo adiante na história do travestismo no Brasil. Ele(a) é um(a) pioneiro(a). Depois da entrevista do cartunista, os parâmetros serão outros. Antes do Laerte, eram todos ilusionistas amadores.
A mágica era outra, interna. E é impressionante como os mágicos foram eficientes, como nos iludiram e iludiram a si mesmos durante todo o tempo. Aqui, eu poderia fazer uma especulação maldosa, e dizer: não é a toa que alguns mágicos se maquiam e fazem objetos desaparecer (sabe-se lá onde os enfiam…) e mais: aquele papo de os palhaços sempre chorarem na hora de remover a maquiagem, tem uma explicação: eles se despedem de si mesmos…
Maldade. Claro que nem todo mágico é boiola e nem todo palhaço é triste, e é claro que isso têm variações, modulações e inclui provas de testosterona incontestáveis. Freddie Mercury , por exemplo, se vestia de empregadinha para multidões de feirantes e funcionários públicos – e eu aposto que ele jamais cogitou em rapar o bigodão viril e muçulmano. O espelho não é problema para o cross-dressing. Não existe o ridículo. Ao contrário. Eles se acham lindas, porque é o cérebro e não os olhos que os refletem. Ótimo para eles.
Mas estamos falando – em tese – do cérebro de um cross-dresser, percebem? Só existe uma coisa mais míope, esdrúxula e politicamente correta que isso: as malhas da tia Neném, que ela borda com tanta arte, carinho e empenho. “Uma beleza, tia. Vou usar, claro que sim”.
Tem mulher que gosta, usufrui e se diverte com a perspectiva de inverter a ordem dos fatores e alterar os produtos. Mas aí – suspeito … – existe uma volúpia de vingança, poder e manipulação, sei lá, acho que o jogo é o mesmo, mas a disputa e o resultado são diferentes. Nesse lugar muito provavelmente deve residir o tesão. Acho que sim. A gente pode tentar entender o que se passa na cabeça de um pai de família que se veste de Paquita, mas jamais vai entender o que se passa na cabeça de uma mulher. Ainda mais se ela tiver um homem a sua disposição. Para emitir uma opinião mais abalizada, eu precisaria conversar com a namorada do Laerte – que divide o estojo de maquiagem, é a responsável pelo corte de cabelo e, afinal, é a mulher ou homem dela(e) – creio que somente assim, eu compreenderia esse lado feminino que (em tese) legitimaria o outro, o lado laertino.
De qualquer forma, os cientistas da indústria de cosméticos deviam estudar o fenômeno. A barangagem empenhada agradeceria. Trata-se, enfim, de um tema muito complexo e sofisticado. Confunde a gente, Ronaldinho que o diga. E se eu não tivesse que retocar a maquiagem agora, a maquiagem do meu próximo livro, falaria mais sobre o Laerte, esse Pirata do Tietê que jamais vai parar de nos surpreender e também não vai nos poupar do apetite dos tubarões. Sou teu fã mais do que nunca, Laerte. Valeu, barangona.
*Personagem do Laerte, e título do seu próximo livro. Leiam a entrevista na Folha de São Paulo, histórica.
**Segundo meus amigos experts, ninguém vai chegar num sex-shop e pedir um caralhão para viagem. Mais discreto e elegante pedir um “Dildo”.
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