No próximo mês de julho completam-se 70 anos do desembarque dos pracinhas da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Itália, onde foram combater, ao lado das tropas aliadas, os exércitos nazi-fascistas. O legado da FEB foi heroico, pois os brasileiros, sem treinamento ou armamento adequados e em terreno hostil, lutaram bravamente e venceram os poderosos alemães em batalhas sangrentas. A derrota do III Reich em 1945 expôs a contradição dos militares brasileiros de lutar contra o totalitarismo no exterior e sustentar uma ditadura em casa, o que levou o Exército a derrubar o Estado Novo que tinha ajudado a erigir.
Esse legado glorioso da FEB foi maculado entre 1964 e 1985, quando as Forças Armadas brasileiras assumiram o controle do Estado e impuseram ao país uma ditadura antipopular que recorreu sistematicamente à tortura, assassinato e “desaparecimento” de dissidentes políticos. Mas a Comissão Nacional da Verdade (CNV) ofereceu uma oportunidade para que as Forças Armadas resgatassem sua dignidade denunciando o grupo de facínoras que comandou a repressão. No último dia 1º de abril, a CNV pediu para que os comandos do Exército, Marinha e Aeronáutica investigassem desvio de funções em instalações militares onde sabidamente ocorreram torturas e mortes durante a ditadura: os DOI-Codi de São Paulo, Rio e Recife, a 1ª Companhia da PE da Vila Militar, além da Base Aérea do Galeão, Base Naval da Ilha das Flores (Rio) e do quartel do 12º Regimento de Infantaria do Exército em Belo Horizonte.
Lamentavelmente, nesta semana os comandos das três forças encaminharam documentos à comissão negando qualquer desvio de função nas instalações mencionadas. No caso do Destacamento de Operações de Informações (DOI), o principal órgão da repressão, o Exército chegou ao cúmulo de afirmar não há registros institucionais de sua criação. Outro local de torturas, a Ilha das Flores, foi descrita pela Marinha como um lugar onde os presos “tinham boas condições para o cumprimento das penas”. A desfaçatez fica mais evidente à luz das revelações feitas recentemente por oficiais reformados que participaram da repressão. Entre eles estão o coronel PM Riscala Corbaje, que admitiu ter torturado mais de 500 presos políticos; o coronel Avólio Filho, que viu o ex-deputado Rubens Paiva ser espancado até a morte; e o também coronel Paulo Malhães, torturador confesso assassinado em abril, que contou em detalhes e sem arrependimentos os métodos dos torcionários.
Essa atitude “corporativa” dos comandos militares de negar os crimes da ditadura, recusando-se a ajudar a esclarecê-los, é inaceitável numa democracia. Além de enxovalhar a honra das Forças Armadas e a dos pracinhas que lutaram contra o fascismo. Os atuais comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica, que não tiveram nenhum envolvimento com a violação de direitos humanos na ditadura, deveriam mirar-se no exemplo de seus pares da Argentina e do Uruguai, países que também foram vítimas de golpes militares e ditaduras nos anos 1960 e 1970.
Na Argentina, onde mais de 200 chefes militares já foram julgados e condenados, as Forças Armadas, como instituição, pediram desculpas públicas ao país pelos crimes da ditadura. “O Exército sequestrou, torturou e assassinou e pede perdão por esses crimes, gerados por outro crime, o golpe de Estado”, declarou em 1995 o então comandante do Exército, general Martín Balza, sendo seguido pelos comandantes da Marinha e da Aeronáutica. Bem mais tarde, em 2011, o comandante do Exército uruguaio, general Pedro Aguerre, disse que o Exército não toleraria nem acobertaria “homicidas ou delinquentes” em suas fileiras. “Não tenho conhecimento de um pacto de silêncio para acobertar crimes dentro da força e, mesmo desconhecendo se existiu tal pacto, dou a ordem para sua suspensão imediata”, acrescentou o general Aguerre.
Aqui, infelizmente, ninguém teve a coragem de tomar a mesma atitude. “Ninguém assumiu responsabilidade pelos desatinos do passado, nem chamou de delinquentes aos camaradas fardados que vulneraram a Constituição ou emitiram ou cumpriram ordens imorais”, escreveu há tempos o jornalista Luiz Cláudio Cunha. “Não chegaram à grandeza de qualificar como golpista o próprio Exército que, em nome da luta contra a subversão, derrubou o governo constitucional e se instalou no poder de forma ilegítima”. O jornalista lembrou que a apuração dos crimes da ditadura deveria ser o principal interesse dos chefes militares numa democracia, pois quando a verdade não é apurada, as atuais Forças Armadas acabam comprometidas com os crimes do passado.
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