O Código Florestal Brasileiro, instituído em 1965, mais do que alterado, flexibilizado, decepado, devia ser cumprido. Sua atualização, necessária, viria de amparo do Estado através de medidas simplificadoras e créditos públicos para serviços ambientais aos verdadeiros pequenos agricultores sem recursos, para que estes não ficassem mais onerados com a imprescindível preservação de minas d´água, margens de rios e matas do cume de encostas. Estes setores, corretamente identificados, precisam de fato ter um tratamento legal e transparente diferenciado. Mas não podem ser usados como biombos para interesses de desmatadores.
O debate sobre as alterações no Código coloca em disputa duas visões antagônicas de uso da terra: a dos produtivistas do agrobusiness e a dos agroecologistas. Vitoriosos os primeiros, estarão ameaçadas muito mais do que árvores: serão afetadas as seguranças hídrica, energética, biológica e econômica, garantidas constitucionalmente.
A história da apropriação do solo brasileiro é a história da concentração fundiária e da produção sobretudo para exportação. Suas marcas são latifúndio, monocultura, escravidão e dependência externa. Só recentemente se percebeu que essa forma de dominação trazia, congenitamente, outro elemento: a devastação ambiental. A legislação, inaugurada com a Lei de Terras, de 1850, no Império, consolidou a apropriação do território nacional por uma casta. A custosa demarcação e o registro de todos os lotes, que então se passou a exigir, garantiu o suprimento de mão de obra escrava para as atividades de agroexportação e a supremacia dos grandes proprietários, que até hoje constituindo apenas 3% dos proprietários – controlam 56,7%% das áreas de cultivo. Os pequenos proprietários e agricultores familiares 85,5% dos estabelecimentos do campo – detêm, apenas, 30,5% das terras. 70% dos créditos agropecuários vão para os grandes. É o passado muito vivo no presente, que reforça a premência da reforma agrária.
A visão “agroempresarial” predominante, – que chega a considerar os preceitos da Reserva Legal (RL) e das Áreas de Preservação Permanente (APP) um “atentado ao direito de propriedade, um confisco”, como expressam vários parlamentares – no máximo atura concessões compulsórias ao ambientalismo. Este é visto como mero modismo: Os ambientalistas falam muito em biodiversidade mas se esquecem do abastecimento, da comida; falam de proteger matas e águas, mas se esquecem de proteger o ser humano, pontificou a senadora ruralista Kátia Abreu, do DEM, em trânsito para o PSD. O relator das alterações no Código, deputado Aldo Rebelo, faz o elogio do agrocapitalismo, a despeito de sua filiação ao PCdoB, quando reclama que “o Brasil teve reduzido em mais de 23 milhões de hectares o espaço ocupado pela agropecuária nos últimos dez anos, entre outras razões por causa da demarcação de novos parques, terras indígenas e florestas” (OESP, 30/4/2011). Seu empenho contra a demarcação da terra indígena Raposa/Serra do Sol ficou conhecido: Transformamos em parques terras aptas para a agricultura, enquanto os demais países só o fazem com desertos, geleiras ou montanhas rochosas, arremata.
O subtexto de todas essas assertivas é o afã imediatista e raso que reza que o Brasil não pode imobilizar suas riquezas. Ou seja: preservar é antieconômico, terra boa é a terra cultivada ou convertida, ao máximo, em pastagens “produtiva”. Visão retrógrada com ares de progressismo e modernidade, apesar do clamor, neste século XXI, por mais cuidado com a Mãe Terra e por avanço para uma economia de baixo carbono.
Para nós vigora o entendimento possibilitado pelos avanços da ciência, que os antigos não dispunham de que não há uso da terra e dos bens naturais adequado sem relação de pleno respeito e integração com eles. De que não há “interesse social” que justifique a retirada da vegetação nos entornos das nascentes, olhos d´água, margens de rios. De que é risco de desertificação a perda de 35 milhões de hectares de matas, até 2006, na Amazônia e no Cerrado. De que só é sustentável o que reconhece a natureza como mãe e parceira, da qual também somos parte, e não como força madrasta a ser subjugada. Rompendo com o enfoque dualista e maniqueísta (“produção x preservação”), sabemos que, como informa a Agência Nacional de Águas, nos cultivos devidamente irrigados e em áreas com preservação de matas e recursos hídricos “cada hectare equivale a três de sequeiro em produtividade física e a sete em produtividade econômica”. Constatamos, com a SBPC, que 76% do total das terras utilizadas pela agropecuária no Brasil de hoje apresentam alguma fragilidade decorrente de limitação nos solos. E concluímos que, como corolário dessas análises científicas, as APPs e as RLs deveriam ser consideradas como parte fundamental do planejamento agrícola conservacionista das propriedades (GT do Código Florestal, SBPC/ABC, 2011).
Ao contrário do que apregoam os ruralistas, que parecem querer monopolizar a terra e a verdade, nosso enfoque não é urbano, de quem não conhece o cotidiano da vida rural ou de ONGS multinacionais. Estão nesse mesmo caminho de ação sócio-ambiental presente e perspectiva para as gerações vindouras, entre outras entidades, todas respeitáveis, a Comissão Pastoral da Terra, a Federação Nacional dos Trabalhadore(a)s na Agricultura Familiar, a Pastoral da Juventude Rural, o Movimento das Mulheres Camponesas, o Movimento dos Atingidos por Barragens, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o Movimento dos Pescadore(a)s Artesanais e a Via Campesina.
A açodada urgência para a votação da matéria nos levaria à seguinte situação: só conheceríamos os detalhes da proposta no próprio momento da votação. Uma “colcha de retalhos” de quase uma centena de artigos, com suas alíneas e eventuais brechas e incongruências, teria que ser examinada em cima do laço. Prerrogativas de licença ambiental para prefeituras; minimização do papel do Ministério Público; dispensa, redução ou intervenções em APPs e RLs; pecuária e outras atividades de “baixo impacto” em topos de morros e outras áreas protegidas; anistia a desmatadores; enfraquecimento do CONAMA; ampliação das possibilidades de manejo “agrosilvopastoril”; fim da formalização da averbação das reservas em cartório; exploração de espécies florestais em extinção, e outras tantas propostas polêmicas, seriam analisadas a toque de caixa. Registradora, quem sabe: Time is money, my farmer!”. Processo da pior técnica legislativa. Essa irresponsabilidade, por si só, revela o desprezo de muitos para com os urgentes cuidados ambientais. Melhor dizendo, para com o nosso chão e seiva vital comum, a Terra.
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