Raimundo Caramuru Barros*
“Q U A M M U T A T U S A B I L L O”
Ulysses Guimarães durante duas décadas liderou dentro do Congresso Nacional a oposição ao regime autoritário que assumiu os destinos do país de 1964 a 1985. Com a retomada do processo democrático a partir de 1985, o ilustre parlamentar passou a liderar a elaboração de uma nova Constituição afinada com a redemocratização do país. Em 1988, como Presidente da Assembléia Nacional Constituinte, este insigne homem público proclamou a nova Carta Magna, que se tornou a partir de então o novo paradigma do processo democrático brasileiro.
Ao proclamá-la, Ulysses cognominou-a como “cidadã” para ressaltar que a partir daquele momento ela pautaria todos os esforços, com vista a implantar no Brasil uma democracia em que os cidadãos e cidadãs da sociedade civil empreenderiam, à luz dos direitos fundamentais da pessoa humana, a construção de uma democracia integral e integrada, ou seja, de uma democracia que integrasse harmoniosamente suas cinco dimensões basilares: política, econômica, social, cultural e ambiental. Neste sentido, a nova Carta Magna prevê três novos instrumentos capazes de ensejar o exercício de uma democracia assumida diretamente por toda a sociedade civil brasileira: o referendo, o plebiscito, e acima de tudo o projeto de iniciativa popular. Esse três instrumentos complementam as lacunas e limitações inerentes ao exercício da democracia exclusivamente representativa.
Por isso, causou surpresa – e mesmo pasmo – o posicionamento pouco democrático do líder Romero Jucá na semana passada, ao se recusar em abrir prioridade para um projeto de iniciativa popular apoiado por vários milhões de brasileiros. Ontem (17), pressionado, Jucá recuou e aceitou negociar a colocação do projeto na pauta do Senado. Embora líder do governo no Senado Federal, o senador pelo estado de Roraima expressava apenas o ponto de vista de uma ala da esquerda brasileira que – tendo chegado ao poder – encastela-se nas cúpulas de seus respectivos partidos, esquece e esnoba suas raízes populares, e torna-se insensível às vozes “roucas” das ruas.
Esta atitude de natureza corporativista nos leva a aplicar a essa ala da esquerda a expressão de Virgílio, o maior poeta da língua latina: “Quam mutatus ab illo!” Na sua epopéia “Eneida”, o poeta latino leva seu protagonista Enéias a narrar à rainha de Cartago a tragédia de Aquiles, o herói da cidade de Tróia, depois que esta cidade foi insidiosamente conquistada e incendiada pelas tropas gregas. Ao descrever a figura de Aquiles nessas circunstâncias deploráveis, Enéias comenta: “Quam mutatus ab illo!” Superando a índole sintética do idioma latino e a forma concisa de sua poética, esta expressão pode ser assim interpretada: “Como estava ele mudado com relação àquele Aquiles que eu conhecera antes de tamanha tragédia!”. No atual contexto do país, ao analisar o posicionamento dessa ala da esquerda brasileira pode-se, parafraseando o troiano Enéias, aplicar-lhe a expressão: “Como está ela mudada, longe de suas origens populares”.
* Filósofo e teólogo, com mestrado em Economia nos EUA, foi consultor do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e atuou como especialista nas áreas de transportes, trânsito e meio ambiente, dedicando-se em seguida à assessoria de diversas organizações não-governamentais. É autor de Desenvolvimento da Amazônia – como construir uma civilização da vida e a serviço dos seres vivos nessa região (Editora Paulus, 2009), entre vários outros livros
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