Há tempos São Paulo é um território deflagrado. Implantaram aqui a máxima de Margaret Thatcher: “Não existe sociedade, o que há e sempre haverá são indivíduos”. E nessa lógica a equação Estado social mínimo x Estado penal máximo vem se perpetuando. Hoje é, seguramente, a locomotiva que puxa o Brasil para o passado. Sem data específica, já que o retrocesso aqui é algo que não possui limites no horizonte do tempo.
Mas, sem pouca modéstia, me atrevo a apontar o dedo no calendário. Retorno a 1917 e à greve operária daquele ano. Na ocasião, ao paulista Washington Luís, então prefeito e futuro presidente do país, que hoje é nome de rodovia, foi atribuída a frase: “A questão social é questão de polícia”. O texto original era “a agitação [sic] operária é uma questão que interessa mais à ordem pública que à ordem social”. Coloquei o texto correto pra não me acusarem injustamente, embora as duas versões tenham o mesmo significado. Basicamente, a grande contribuição do Estado à República. Além de outras, que continuam a achincalhar o país, nossa imprensa e a política, estadual e nacional, ontem e hoje.
Vejam que ali Washington Luís deixava um legado que explica por que centenas de jovens foram presos nos últimos dias nas manifestações contra o aumento nas tarifas de transporte público. Não se trata apenas de combater atos possivelmente exagerados de alguns manifestantes, mas de iniciar a própria violência, como forma de impedir qualquer contestação à ordem pública que implique ameaças à ordem social e ao status quo.
O debate não está apenas no aumento de R$ 0,20 nos bilhetes de transporte. Está na crítica à própria estrutura do transporte público no país, que tem na capital, estrangulada pelos carros, símbolos motorizados do individualismo, sua maior expressão. Mas também está no aumento de vinte centavos que impacta no bolso de quem depende do transporte coletivo para se locomover, estudantes e trabalhadores. Pessoas que pegavam apenas duas conduções na cidade deixavam às empresas de transporte quase R$ 200 todo mês, quase 30% do valor do salário mínimo nacional. Isso antes do aumento. Trata-se de um direito financiado individualmente via tarifa. Uma excrescência jurídica, política e social.
Além disso, os protestos acumulam um conjunto maior de descontentamentos, proclamados em todos os atos. Há uma insatisfação massiva com o recrudescimento do conservadorismo no Brasil, que tem na aprovação do Estatuto do Nascituro, no avanço da PEC 215, na violência contra os indígenas e nas frequentes violações de direitos humanos com as obras das Copas e grandes eventos que iremos sediar.
Não ter dialogado com o movimento, conforme intermediação feita pelo Ministério Público, era algo esperado do governo do estado. No entanto, a Prefeitura de São Paulo vinha em rota diferente em sua relação com os movimentos sociais. Foi um erro seguido por outro, no caso, o silêncio com a repressão violenta. Um erro crasso que pode sair caro. E tem que sair. Porque não se atacam as liberdades democráticas impunemente. E uma forma de atacá-las é com ação, mas também com a omissão ou mesmo a oferta de ajuda.
Por isso também é chocante a falta de solidariedade de alguns movimentos sociais, parlamentares ligados aos direitos humanos e outras lideranças políticas com os manifestantes. E isso revela a fragilidade cognitiva das nossas referências progressistas. Não se trata de avaliar se é uma manifestação que pode respingar eleitoralmente aqui ou ali. Mas de defender o direito de manifestação contra o vandalismo do Estado. Vandalismo que historicamente sempre atuou como cordão de isolamento às mais avançadas demandas civilizatórias e que neste momento não poupa nem os funcionários da grande imprensa, sua aliada histórica, tão avançado se encontra em seu estágio de evolução.
PublicidadeHoje o vandalismo de Estado que opera em São Paulo precisa ser denunciado. É um vandalismo que matou em 2012, pelas mãos de sua Polícia Militar, mais pessoas que durante todo o ano de 2006. Que massacrou famílias em Pinheirinho, que protege os interesses dos grandes latifundiários e empresas multinacionais e que aos professores em defesa da educação responde da mesma forma que aos estudantes e jovens em defesa da mobilidade urbana. Deixar passar mais esse ato é colocar em risco nossa frágil e jovem democracia e, portanto, o presente da geração que nela cresceu e o futuro de gerações que dela dependem.
Ele não tem medo de falar o que pensa
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