Ricardo de João Braga *
Uma definição genérica de reforma política pode ser: uma intervenção deliberada e planejada no sistema político que, por meio de alterações de regras e procedimentos, busca estabelecer novos comportamentos e resultados políticos. Constitui-se de diagnóstico, proposta de intervenção e resultado almejado.
Muita energia cívica, política e intelectual tem sido gasta na proposta nas últimas décadas. Com as manifestações de junho último, mais uma boa dose de entusiasmo, esperança e expectativa foi adicionada ao projeto. Toda essa energia, contudo, precisa do correto encaminhamento, pois falta de ação ou resultados diversos do esperado atuarão em detrimento da democracia.
A partir de um ponto de vista científico, as propostas de reforma política exigem reflexões e geram sobretudo preocupações. Se submetidas à avaliação criteriosa, o cenário mostra-se preenchido mais de dúvidas e ceticismo do que de certezas. Há uma dissonância entre discursos, propostas e resultados, talvez oriunda de estratégias e planos políticos dos dirigentes do processo, almejando objetivos não explícitos, ou talvez seja mesmo derivada da falta de avaliação sistemática, procedimento metódico oposto à pressa de mudar.
O intelecto humano relaciona-se com o mundo principalmente sob duas perspectivas. A primeira busca compreender o que ocorre e como. Ao que podemos chamar de esforço compreensivo, são comuns a categorização e classificação de fenômenos, o estabelecimento de relações e causalidades e a construção de modelos explicativos. Estes procedimentos são aqueles atinentes à ciência, em que cabem teste, verificação, refutação e reformulação – recorre-se ao mundo das coisas para avaliar a correção do entendimento. A segunda perspectiva é aquela do dever-ser. Nesta, trata-se de definir o que é bom, correto, justo – a definição de uma doutrina. Enquanto na ciência busca-se provar o que é a partir do mundo das coisas, na doutrina não cabe o processo de teste da ciência, mas sim instaurar convicções subjetivas.
Ao que parece, um problema central à reforma política é a confusão entre doutrina e constatações científicas. Definir quais resultados espera-se do funcionamento do sistema político, como uma democracia mais responsiva, comportamentos éticos, políticas públicas focadas em justiça ou desenvolvimento econômico, são questões colocadas no mundo dos julgamentos de valor.
Não caberia, por exemplo, avaliação de falseabilidade ao posicionamento de que o Estado deve buscar desenvolvimento econômico na perspectiva liberal – o que podemos, obviamente, é não concordar por isto não nos parecer bom. Por outro lado, dizer que o voto distrital (definido como a escolha de um representante pelo sistema majoritário em pequenos distritos) aproxima o eleitor do representante é uma assertiva que precisa de verificação científica, pois a relação entre sistema eleitoral e comportamento de eleitor e representante deve ser submetida a teste.
PublicidadeNos debates da reforma política têm sido formuladas certezas a partir de posições doutrinárias como se fossem fatos comprovados no mundo das coisas. Financiamento público, votação em lista fechada, voto distrital, fim das coligações, etc., todos são apresentados pelos proponentes com firmeza, garantindo-se que resultados tais ou quais serão atingidos. Podem ser equívocos de boa-fé, mas fazendo novamente concessão ao cinismo, talvez estas propostas busquem objetivos mais imediatos e menos democráticos, como maior estabilidade e poder aos dirigentes partidários e políticos já detentores de posições privilegiadas.
Vamos agora considerar o sistema partidário e algumas propostas genéricas de alteração.
O Brasil possui mais de 20 partidos em atividade nos pleitos eleitorais e dentro dos Legislativos federal, estadual e municipal. Para alguns críticos, o número é garantia de problemas ao sistema político e precisa ser diminuído. Apontam-se a falta de identidade das agremiações e a dificuldade para que os Executivos consigam governabilidade − os excessivos partidos não representariam nada ao eleitor e atrapalhariam o governo.
A explicação para a existência desse número exagerado de partidos seria a busca inescrupulosa por poder e dinheiro, com as legendas de aluguel que barganham espaços em campanhas e posteriormente nos governos. Instrumentos para alcançar tal diminuição são a criação de cláusulas de barreira (exigência de número mínimo de votos para que o partido tenha existência legislativa), a extinção das coligações (expediente que permite que partidos pequenos e nanicos usem da força eleitoral dos grandes para viabilizar a eleição de um ou outro membro seu) e impedimentos legais à criação de novas siglas.
Uma primeira consideração sobre partidos é que eles devem atender a dois objetivos algo incoerentes entre si: representar o povo e conferir funcionalidade ao governo. Quanto mais grupos estejam representados no poder, melhor a representação e mais difícil a constituição do governo. A diminuição no número de partidos diminui a pluralidade de grupos representados mas pode facilitar a constituição de governos. O ponto ideal dessa combinação é encontrado pelo bom senso e o trato com questões reais, próprias de cada nação, pois não há fórmulas prontas.
A busca de coerência ideológica dos partidos, uma melhor definição de suas identidades junto ao eleitorado, parece, para o caso moderno e brasileiro, uma esperança algo utópica. O fim das alternativas críveis ao capitalismo fez com que o nível de diferenciação programática entre os partidos tenha se tornado pequena nos discursos e quase nenhuma na prática do governo. Além disso, a sociedade brasileira é bastante informe no que diz respeito à organização social e econômica e sua consequente manifestação no mundo político.
Quando o Brasil expandia sua urbanização e industrialização pesada, o regime ditatorial impediu que tais mudanças gerassem reflexos políticos. A descompressão dos movimentos políticos nos anos 80 do século passado coincidiram com a transformação do capitalismo nos países centrais – com uma queda da identidade partidária na sociedade − e uma crise do modelo econômico brasileiro. Clivagens sócio-econômicas que se refletiram nos partidos políticos mais fortemente nos países centrais estão hoje, mesmo lá fora, em erosão. Assim, esperar a organização de partidos ideologicamente consistentes no Brasil é acreditar demais em engenharias legais e desconsiderar o momento histórico global e a estrutura social brasileira.
As recentes regras que impedem o “troca-troca” de legendas, surgida de uma convicção doutrinária dos tribunais, são um bom ensaio de possíveis mudanças propostas pela reforma política. Regras que em princípio mostravam-se como restritivas estão sucumbindo a alguns expedientes pragmáticos que demonstram as motivações políticas, sociais e econômicas, as quais movimentam a política apesar das leis.
Uma nova alternativa, amparada pela lei, é criar legendas. O PSD foi um caso de sucesso criado após as novas regras (atraiu quase 50 deputados federais). Outros partidos como o Ecológico Nacional e o Pátria Livre também foram criados mas não obtiveram sucesso. Estão na linha de produção outros três, o Solidariedade, o Republicano da Ordem Social e o Rede Sustentabilidade, além de uma possível fusão do PPS a fim de abrir espaço a movimentos conjunturais para 2014. Novas regras, mas velhas práticas.
A cultura da troca de partidos é tão forte que encontrou também novo expediente jurídico inusitado, a declaração de justa causa. Amparados em oportunidade legal, os partidos, a fim de acomodarem no varejo suas pressões internas, permitem a saída de membros com atestado de justa-causa, ao qual a Justiça dá guarida e preserva mandatos e direitos políticos. É o próprio partido que permite a saída do antigo filiado. Outra vez novas regras, mas velhas práticas.
Os novos partidos apresentam a si mesmos como uma “nova ideia”, “uma nova proposta”, mas para a maioria dos políticos em ação a criação de partidos serve como possibilidade de barganha dentro das agremiações a que pertencem ou uma melhor oportunidade em nova legenda, mecanismo em tudo similar ao antigo troca-troca de partidos.
Se há um mercado e um empreendedorismo na criação de novas legendas, que auferem ganhos à medida que os atuais participantes perdem, restringir o número de partidos por lei apresenta-se apenas como uma reserva de mercado aos atuais competidores, e não uma medida estruturante para a melhora da democracia. Imaginar que pelo congelamento das siglas vai-se criar coerência ideológica e identidade entre agremiação e povo é uma hipótese muito pouco provável. Diante da estrutura social e da cultura política brasileira, a engenharia institucional pouco tem alcançado na limitação ao número de partidos.
A grande maioria de agremiações sem identidade reflete em boa medida o aspecto informe que a ação política adquire entre os cidadãos brasileiros e seus movimentos organizados. Partidos precisam de enraizamento social, e se o eleitor não pune os políticos sem identidade, difícil que as regras modifiquem a realidade. Restringir o número de partidos por lei parece ser trocar a causa por consequência.
O segundo aspecto é o impacto do número de partidos na governabilidade. Alega-se que menos partidos garantiriam a formação de um governo com apoio signficativo (tanto mais se o regime fosse parlamentarista). Um olhar analítico, contudo, demonstra que na esfera federal, especialmente a partir de 1995, houve níveis eficientes de apoio legislativo ao Executivo no Brasil. Agendas de reformas e de governo obtiveram e ainda obtém sucesso significativo no Legislativo. Como retrata a literatura, o apoio ao governo é fruto de uma barganha entre o Executivo e Legislativo, em que se considera a participação direta no governo (conquista de cargos), a definição de políticas públicas e a distribuição de recursos orçamentários.
Não parece nada crível que, simplesmente por haver menos agremiações, elas se alinhariam mais automaticamente ao Executivo. Os mesmos interesses por cargos, políticas públicas e recursos orçamentários seriam considerados e negociações realizadas. A diferença seria provavelmente a diminuição no número de negociações, não mais com oito ou dez partidos mas com dois ou três. Que diferença isto faria em termos de comportamento político do Executivo e do Congresso?
Se as negociações giram em torno apenas de interesses de sobrevivência política e ganhos não republicanos, então estar-se-ia apenas trocando um sistema de trocascom um pólo forte frente a oito ou dez demandantes fracos, por um sistema com dois pólos fortes – a sociedade continuaria sem ganhar nada, apenas haveria realocação de recursos entre o Executivo e os partidos.
Se se considera que a formação do governo deve refletir interesses legítimos representados no Legislativo, então mais partidos podem levar mais questões, interesses e pontos de vista ao governo do que menos partidos, e neste caso a sociedade deve optar entre um governo mais plural e mais representativo ou outro menos representantivo e mais operacional (esta questão remete novamente à complexidade social). Com qual número de negociadores o processo se tornaria não funcional não se tem clareza, mas como mostram os retrospectos legislativos dos governos FHC, Lula e Dilma (excepcionados os percalços atuais derivados de outras fontes) o governo tem se formado e aprovado uma agenda.
Pretendemos nos estender sobre outros pontos em artigos vindouros, inclusive apontando aspectos onde o ceticismo é menor, e por isso paramos por aqui.
Conclui-se reforçando o ponto de que é necessário avaliar com critério e perspectiva científica fenômenos políticos concretos, como, por exemplo, o sistema partidário, que apresenta razões de existência e forma de funcionamento. Substituir esse exercício por posições doutrinárias é errar no diagnóstico e na proposta de reforma. Deve-se operar com julgamentos de valor sobre que tipo de democracia se deseja, que forma de representação é a almejada, mas não inferir a partir de posições doutrinárias a relação entre regras institucionais e comportamentos políticos. Reformas políticas são eventos raros, e erros devem ser evitados para que não se percam as valiosas oportunidades.
*Doutor em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Iesp/UERJ), é professor do Mestrado Profissional em Poder Legislativo da Câmara dos Deputados.
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