Jandira Feghali *
Certa vez, lá pelos meados de 2008, o querido e brilhante compositor Nelson Sargento bradou durante um bate-papo com o ex-presidente Lula: “Ô Lula, tem que ver esse negócio do direito autoral. Eu não ganho um tostão!”. Não é para menos o inconformismo do artista carioca, autor de músicas belíssimas como “Agoniza mas não morre”, “A noite se repete” e “Perdoa”. Os direitos econômicos de sua obra e de milhares de outros autores fluem por circuitos inacessíveis na estrutura do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad). Um cofre cujo segredo é desconhecido do seu dono – é assim a atual gestão coletiva de direitos autorais no Brasil.
Na contramão dessa interrogação sobre o valor arrecadado e distribuído por esse sistema aos artistas do país, o Senado Federal avançou em noite histórica no Congresso Nacional. Num momento ímpar, artistas de várias gerações e linguagens, mobilizados pela associação Procure Saber e pelo empenhado e combativo Grupo de Articulação Parlamentar Pró-Música (GAP), o Ministério da Cultura (MinC), a Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados e a Frente Parlamentar em Defesa da Cultura, foi aprovado o PLS 129, oriundo de CPI, que garante transparência, fiscalização e novos critérios de governança para o Ecad e as associações que o compõem.
A atividade do Ecad entrou na obscuridade há mais de 20 anos, a partir da extinção do Conselho Nacional do Direito Autoral pelo ex-presidente Fernando Collor. A retirada da fiscalização pública sobre um monopólio privado, criado por lei, e que detém o controle financeiro sobre os direitos de terceiros, foi um eclipse na gestão coletiva de direitos autorais. A CPI do Senado foi a última de uma série de ações para mostrar como andava nublada sua ação no país e chegou mesmo ao ponto de indiciar seus diretores.
O projeto é determinante para a sobrevivência de milhares de artistas que, assim como Nelson, não eram atendidos. Resumidamente, o PL propõe várias inovações importantes: obrigações de transparência, administração democrática e eficiência, fiscalização pela administração pública, a redução da dupla “mordida” do Ecad e das associações sobre os recursos dos autores por meio de uma abusiva taxa de administração (passando de 25% para 15%), divulgação ampla dos valores, montantes e métodos de aferição da gestão coletiva, facilitação do recurso à auditoria, mandatos de três anos com apenas uma recondução ao cargo de dirigentes das associações, fortalecimento dos titulares originais de direito (combatendo a captura do sistema pelas multinacionais) e igualdade no peso dos votos para as associações que compõem o Ecad, democratizando sua assembleia.
É inverídica a afirmação que o PL “estatiza” o Ecad, assim como proferem alguns de forma vergonhosa, por má fé ou desinformação, na tentativa de nublar o debate. O projeto gera competências para a administração pública, que determinará em breve a criação de uma estrutura de fiscalização, mediação e arbitragem por parte do governo, como ocorre no mundo inteiro e que, certamente, terá forte participação dos autores.
Nos próximos dias, seremos nós, aqui na Câmara dos Deputados, que faremos esse marco histórico ao país. A Comissão de Cultura, que presido, será guerreira na linha de frente desta segunda batalha, sustentada pela fundamental e indispensável mobilização e apoio dos verdadeiros detentores de direitos. Aí teremos a possibilidade de alcançar a etapa final de tramitação deste projeto, que já tem o compromisso da presidenta Dilma de sancioná-lo, garantia expressa pela própria presidenta em audiência no dia 3 de julho.
PublicidadeO horizonte finalmente fica visível para quem luta pela democratização do direito autoral brasileiro. A cultura deste país está registrada na poesia e melodia de artistas incríveis – que nascem a cada instante nos recantos deste imenso país, nas mesas de um bar e nos palcos da vida. O Brasil é escrito pela criatividade e emoção destes cidadãos, de tantas formas e ritmos. A sabedoria de Nelson Sargento ensina: “Eu não dou bobeira / Ninguém vai bater minha carteira”. Agora, definitivamente, não vão mesmo.
* Jandira Feghali é médica, deputada federal (PCdoB/RJ) e presidente da Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados.
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