Márcia Denser*
Fechando a trilogia de artigos sobre a saga do neoliberalismo como ideologia dominante nas três últimas décadas, chega-se finalmente aos anos 90 – queda do muro de Berlim, colapso da União Soviética. Para Naomi Klein¹, jamais haveria um Plano Marshall na Rússia nos anos 90, pois existiu apenas um Plano Marshall por causa da Rússia!
Quando Boris Yeltsin aboliu a União Soviética, a “arma carregada” (o poder do arsenal nuclear russo conjugado ao ideológico representado pelo socialismo difuso em todo o Ocidente, sobretudo na Alemanha do pós-guerra) que havia forçado o desenvolvimento do Plano foi desativada. O Plano Marshall original não resultou da benevolência nem dum despertar da boa consciência política, mas do medo da revolta popular. Sem isso, o capitalismo ficou subitamente livre para evoluir em sua forma mais selvagem, não só na Rússia como no mundo inteiro. Após o colapso soviético, o livre mercado passou a ter um monopólio global, sem as “distorções” sociais e estatistas.
Ainda segundo Klein, essa foi a tragédia da promessa feita aos russos e poloneses por parte dos norte-americanos – a de que se eles seguissem as prescrições da terapia de choque (privatização, desregulação dos mercados, corte dos subsídios estatais e projetos sociais), acordariam num “país europeu normal”. Só que “aqueles países europeus normais”, com suas sólidas redes de seguridade social, sindicatos poderosos e serviço de saúde socializado, surgiram como um compromisso entre o comunismo e capitalismo. Agora, rompido tal compromisso, todos os programas sociais estavam sitiados na Europa, como aconteceu no Canadá, Austrália e Estados Unidos. Esses programas não seriam introduzidos na Rússia, não mesmo.
Essa liberação frente a todas as restrições é, em essência, a economia da Escola de Chicago (também denominada neoliberalismo ou neoconservadorismo): não se trata de nenhuma invenção nova, mas do capitalismo despido de todas as bandagens keynesianas, do capitalismo na fase monopolista – que não precisa agradar a seus clientes, que pode ser tão anti-social, antidemocrático e cruel quanto quiser. Esse foi o verdadeiro significado do “fim da história” anunciado por Francis Fukuyama na Universidade de Chicago em 1989: ele não estava afirmando que não existiam outras idéias no mundo, mas que, com o colapso do comunismo, não havia outras idéias suficientemente fortes para constituir um competidor à altura.
O movimento que Milton Friedman deslanchou, nos anos 1950, fica melhor compreendido se for visto como o processo do capital multinacional para recapturar a fronteira altamente lucrativa e sem leis que Adam Smith, o pai dos neoliberais, tanto admirou, contudo, com um desvio. Em vez de viajar pelas nações “selvagens e bárbaras” de Smith, onde não há legislação (uma opção hoje impossível), esse movimento objetivou demolir, de modo sistemático, todas as normas e regulamentos existentes, para recriar aquele estado anterior sem leis.
Os colonizadores de Smith realizaram seus lucros fabulosos por meio da simples apropriação de “terras desperdiçadas”. As multinacionais de hoje vêem ativos públicos, programas governamentais e tudo o que não está à venda como “território a ser conquistado e tomado”: correios, parques nacionais, cemitérios, escolas, seguridade social, telecomunicações, defesa civil e qualquer outra coisa administrada pelo poder público.
Na economia da Escola de Chicago, o Estado atua como a fronteira colonial a ser pilhada pelos conquistadores corporativos, com a mesma ganância implacável que os pioneiros arrancaram o ouro e a prata dos Andes. Enquanto Smith viu “terras férteis” transformadas em fazendas lucrativas, Wall Street viu o mesmo nos sistemas de telefonia do Chile e Brasil, nas linhas aéreas da Argentina, nos campos de petróleo da Rússia, no sistema de água da Bolívia, no sistema público de transmissões eletromagnéticas dos Estados Unidos, nas fábricas da Polônia – tudo construído com dinheiro público e depois vendido por uma ninharia. Sem contar os tesouros criados pela pressão sobre o Estado para que este estabeleça uma patente e um preço para recursos naturais que jamais se pensou transformar em mercadoria, como sementes, genes ou carbono da atmosfera.
PublicidadeOs regimes que impuseram privatizações em massa – Argentina, Bolívia, Brasil, Rússia – foram tomados como exemplo, em Washington, de como a terapia de choque podia ser implantada por meios pacíficos e democráticos, sem golpes ou repressão, quer dizer, sem massacres demasiado visíveis aos olhos do mundo, salvo a “miséria planejada” – os excluídos permanentes do sistema. Em muitas partes do hemisfério sul, o neoliberalismo é freqüentemente tratado como uma “segunda pilhagem colonial”: na primeira, as riquezas foram extraídas da terra, na segunda, foram arrancadas do Estado.
O que temos vivido nessas últimas três décadas é o capitalismo de fronteira, cuja localização se altera constantemente, de crise em crise, e se move assim que a lei começa a vigorar.
¹ in A Doutrina do Choque – a ascensão do capitalismo de desastre. Rio, Nova Fronteira, 2008.
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