Desde a promulgação da Constituição de 1988, o Parlamento brasileiro deve à sociedade uma reformulação do Código Penal, que teve origem no Decreto-Lei Nº 2.848, de 1940, e nasceu no contexto do Estado Novo, de um Brasil ainda rural, que dava seus primeiros passos rumo à intensa industrialização e acelerada urbanização que caracterizaria as décadas seguintes. Como constituinte, pude participar da elaboração da Carta de 1988 que o inesquecível presidente Ulysses Guimarães alcunhou de Constituinte Cidadã. Nossa Constituição atualizou o arcabouço jurídico-constitucional, modernizando-o, à época, conforme os novos tempos de uma sociedade mais democrática, inserida na velocidade das transformações de um mundo globalizado.
Mas enquanto a nova Carta foi fundada nos direitos sociais, valorizando a vida e a dignidade humana, sua nova concepção contrastou com o “velho” Código Penal, conservador. Resultado: a cada dia, esse conflito possibilitou novas e diversas leis, dispersas e setorizadas que, para atender às demandas, acabaram por acarretar prejuízos para a coerência da sistematização de nossos tipos penais e da proporcionalidade das penas.
A insegurança jurídica decorrente dessa situação gerou um sentimento, em nossa sociedade, de que as penas são insuficientes, e de que nosso sistema penal é incapaz de deter a crescente onda de violência que aflige, em especial, os grandes centros urbanos. Esse sentimento de impunidade cria uma falsa expectativa de que aumentando as penas dos crimes estaríamos resolvendo o problema da impunidade no Brasil. E essa expectativa está refletida em parte do texto constante do anteprojeto do Código Penal que a comissão especial do Senado analisa, desde agosto.
Creio que o anteprojeto apresenta questões importantes que teremos que enfrentar. Uma delas é ajustar o Código à realidade do sistema carcerário brasileiro. Como titular da comissão especial, eu acredito ter o dever de atuar para garantir, na discussão da reforma, um olhar mais feminino e voltado para a experiência e militância em relação aos direitos humanos.
Da mesma forma, esperamos que a rica discussão que a sociedade brasileira vivencia, hoje, sobre o enfrentamento das drogas, se faça refletir numa posição mais liberalizante, colocando o usuário sob a guarda da política de saúde pública deste país. Também estamos dispostos a discutir uma forma de compreensão que faça com que, antes da condenação, possamos investigar a causa dos crimes, principalmente as causas sociais que fazem com que eles ocorram.
Fruto de sua época, o atual Código foi desenhado a partir da concepção de uma sociedade profundamente conservadora e que cultuava a proteção ao patrimônio individual, em detrimento do próprio direito à vida e dos direitos coletivos. Agora estamos no processo de construção de um novo Código Penal. Estou feliz em participar deste importante processo de discussão legislativa que esperamos tenha ampla participação da sociedade. No mandato, temos recebido inúmeras sugestões e participado de reuniões com diversos grupos para colher sugestões, tanto para aprofundar os debates como para dar continuidade às garantias coletivas já obtidas, visando a ampliar os direitos humanos para condenados, presos e para aqueles que estão sendo levados a cometer crimes por falta de um Estado que lhes ofereça oportunidades de uma vida digna.
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