Fábio Flora *
Podem me botar no tronco que eu aceito as chibatadas: não tenho um disco de David Bowie nem conheço sua obra a ponto de me declarar seu fã. Mas, de repente, o que ia ser um tweet – ou no máximo um parágrafo no Face – lamentando sua morte virou um texto maior. É que, ao passar o espanador nas minhas memórias, descobri que o tal Camaleão fez mais parte delas do que eu imaginava.
A primeira lembrança é paisagem de que a gente mal enxerga o contorno: a única janela está fechada e o vidro embaçou com a tempestade. Restam pouquíssimos flashes daquele sonho chamado Labirinto: a magia do tempo, filme de 1986 (eu tinha seis anos) estrelado por um Bowie rei dos duendes. Da história, quase nada ficou – mas não esqueço a sensação de estar perdido num desenho de Escher, subindo e descendo escadas que levam e não levam a castelos de areia.
Me ocorreu agora: poucos artistas completam tão bem a expressão “estrelado por”. Culpa do brilho e glamour da entidade Ziggy Stardust (um dos muitos Bowies) cantando “Starman”. Vejam só a coincidência: o hit voltou recentemente ao meu mp3 graças à trilha sonora do ótimo Perdido em Marte – longa de Ridley Scott sobre um astronauta que, depois de um acidente, se encontra ilhado no planeta vermelho. Que canção no universo seria mais adequada para vestir a saga de um náufrago das estrelas?
Outros dois dos meus filmes favoritos ever têm a participação especial do homem que caiu na Terra e trouxe com ele sua música sideral: Moulin Rouge e Dogville. É do outro mundo a sequência em que Satine e Christian entoam o refrão de “Heroes” em meio àquela Paris feérica de Baz Luhrmann. Do nosso mundo, infelizmente, são as imagens de uma América nada feérica – fotografias da miséria nos Estados Unidos que Lars Von Trier emoldura, nos créditos finais, com a toada alegre de “Young Americans”.
Não importava o espaço: era sempre infinito se ocupado por Bowie. Podia estar quase irreconhecível nos minutos em que irrompia como o inventor Nikola Tesla em O grande truque, filmaço de Christopher Nolan sobre a rivalidade entre dois mágicos. Podia estar dividindo e somando um clássico do pop – “Under pressure” – com ninguém menos que Freddie Mercury e companhia.
Quem sabe não resida aí o legado do poeta cuja obra se confunde com uma constelação: seus versos deixam um rastro de poeira (cósmica?) em nossas vidas mesmo que não nos demos conta disso. Como o mormaço que tatua o rosto da gente feito um raio, ainda que não avistemos – porque entre nuvens – a maior das estrelas.
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* Cronista residente no Rio de Janeiro, Fábio Flora mantém o blog Pasmatório e perfil no Twitter.
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