Silmara Cossolino
Passados pouco mais de dois meses do assassinato do garoto João Hélio Fernandes, de seis anos, parlamentares, sociedade e entidades da sociedade civil reivindicam medidas mais eficazes para evitar a repetição de crimes brutais cometidos por menores de idade, ou com a participação deles. Desde então, o debate sobre a redução da maioridade penal tem acirrado discussões país afora, ganhando grande destaque no Congresso Nacional.
Na última quarta-feira (21), por exemplo, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado aprovou uma proposta – que ainda precisa ser votada pelos deputados – que prevê a realização de um plebiscito nacional para ouvir a população sobre a redução da maioridade penal, entre outros temas.
Dias antes, no final de fevereiro, a CCJ por pouco não aprovou substitutivo do senador Demóstenes Torres (PFL-GO), reduzindo dos atuais 18 para 16 anos a idade de responsabilização criminal no país, para os casos de crimes hediondos, como seqüestros, roubo seguido de morte e estupro, e de tráfico de drogas e tortura (leia mais).
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Distantes de qualquer consenso, os senadores decidiram adiar a votação por 45 dias, criando um grupo de trabalho que terá até meados do próximo mês para estudar um conjunto de soluções para a segurança pública.
Em seguida, o assunto será retomado na base do voto, reacendendo uma discussão que parece embalada pela mesma emoção que se vê entre as torcidas nos estádios de futebol. Uma batalha em que a razão nem sempre consegue discernir os prós e os contras de uma posição ou outra.
De um lado…
Numa ponta, os favoráveis à redução apresentam sua lista de argumentos. Um deles é de que a atual legislação é ultrapassada: o jovem de 16 anos teria hoje muito mais acesso a informação e condições de compreender se o ato que pratica está ou não dentro da lei. Se ele pode votar nessa idade, questionam, por que não poderia responder por seus crimes?
Além disso, critica-se a punição máxima prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que prevê não mais que três anos de internação até mesmo para jovens que cometem crimes com requinte de crueldade. A avaliação dos defensores da tese da redução da maioridade é de que o ECA protege em demasia o adolescente e estimula, na mesma medida, a prática de crimes e a impunidade.
De outro…
Na outra ponta, os críticos da redução da maioridade também fundamentam suas argumentações. A primeira é de que a mudança seria inconstitucional, por violar cláusula pétrea da Constituição, interpretação contestada pela outra corrente. Uma segunda crítica é de que a medida trata apenas dos efeitos, sem atacar as reais causas da participação do adolescente nos crimes, como a falta de acesso à educação, o desemprego e a desagregação familiar.
Outro argumento é de que a mudança, em vez de resolver o problema, só aumentaria a crise do sistema penitenciário brasileiro, abrindo espaço para que os jovens fizessem uma espécie de “estágio” com criminosos mais experientes em presídios já superlotados. Eles também contestam a crítica de que não há punição para os menores e reclamam o cumprimento efetivo do ECA.
Mudança no Estatuto
Com uma diferença aqui, outra ali, são basicamente essas as duas linhas de raciocínio que têm pautado o debate de senadores e deputados sobre o assunto. Apesar de o tema ter ficado em segundo plano nas últimas semanas, por causa da crise gerada em torno da instalação da CPI do Apagão Aéreo, a Câmara também tem se movimentado em duas frentes nesse sentido.
Uma delas, antecipada na semana passada pelo Congresso em Foco, contrária à redução da maioridade penal, prevê o aumento de três para cinco anos do período máximo de internação do menor de 18 anos. Mas apenas para crimes hediondos (leia mais).
“Em casos menos graves, o ECA já é rigoroso. Precisa é ser cumprido”, diz o relator do projeto, deputado Flávio Dino (PCdoB-MA), ex-juiz federal. Antes mesmo de ser oficializada, no entanto, a proposta dele já enfrenta resistência de entidades ligadas aos direitos humanos (leia aqui).
Redução imediata
Outro caminho é a própria redução da maioridade penal para 16 anos, prevista em proposta relatada pelo deputado Marcelo Itagiba (PMDB-RJ), ex-secretário estadual de Segurança Pública do Rio de Janeiro.
Relator de 21 propostas de emenda à Constituição (PECs) que tratam do assunto, Itagiba entende que a Constituição pode ser modificada em seu artigo 228 e que a mudança terá efeitos nos índices de criminalidade ostentados negativamente pelo país. “O jovem de hoje não é o mesmo de antigamente. Se o jovem tem consciência do ato ilícito praticado, se tem conhecimento, tem que sofrer todas as penas”, argumenta.
Para o parlamentar, submeter um debate como esse a plebiscito, como querem os senadores, significa desperdício de dinheiro público. Na avaliação dele, o que se gastará com a consulta popular poderia ser destinado a alguma medida educativa. “Os parlamentares têm direito de representar o povo e fazer a discussão para a sociedade”, enfatiza.
O deputado William Woo (PSDB-SP) também considera urgente que o Congresso reveja a maioridade penal. “O adolescente pode votar aos 16 anos. Ele já tem consciência do que é certo e errado e por isso sou a favor da redução para 16 anos. É preciso fazer uma reforma penal para que haja uma pena progressiva de acordo com a idade”, destacou. Apesar disso, o tucano admite que a simples mudança da idade não resolverá o problema. “As cadeias não têm como absorver e nunca tiveram (os adolescentes)”, reconhece o deputado paulista, que também é policial civil.
Sucursal do inferno
Contrapondo-se a essas considerações, o advogado criminalista Nélio Roberto Seidl Machado, conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), embasou a decisão do Pleno da entidade em apoio à ampliação do período de internação de menores de idade infratores em casos específicos. A entidade entende que não cabe diminuir a maioridade penal.
“A OAB teve reunião do Conselho Federal e foi deliberado, por unanimidade, que não cabe diminuir a maioridade penal. Nada se justifica e não conduz a nenhum benefício. Há de se considerar que a lei que trata desta questão é imutável por se tratar de uma cláusula pétrea. Além do mais, as cadeias são horríveis e os menores ficariam em condições desumanas, cruéis”, justificou.
Para a OAB, o ideal seria a prorrogação do período dos infratores já que, com o “fenômeno” da criminalidade, é razoável que o prazo de internação possa ser estendido até 24 anos. Hoje, o jovem tem de ser liberado, compulsoriamente, aos 21. Pela proposta de Flávio Dino, esse limite passaria a ser de 23 anos.
“Se a cadeia é a sucursal do inferno, como estimá-la boa ou adequá-la para pessoas cujas idades as situam como de personalidade ainda em formação, com perspectivas de reinserção social, pelo menos melhores do que a dos que já se acham calejados por freqüentarem os caminhos do crime?”, questiona o conselheiro, em seu parecer.
Emancipação penal
Já o líder do PFL na Câmara, Onyx Lorenzoni (RS), propõe uma solução alternativa: que se crie a possibilidade de o juiz, após ouvir uma equipe multidisciplinar, emancipar menores que tenham cometido crimes hediondos ou homicídios. Caso o juiz emancipe o menor criminoso, ele poderá ser condenado a cumprir pena como qualquer condenado com mais de 18 anos.
A mudança, enfatiza o parlamentar gaúcho, valeria apenas para casos de crimes contra a vida, como estupros, lesões corporais e seqüestros. “Nos crimes contra a vida, o juiz poderia, através de uma comissão especial, formada por profissionais, como psiquiatras, por exemplo, emancipar para fins penais. A comissão verificaria, nos casos de crimes bárbaros, se o adolescente tinha conhecimento do ato cometido, se foi pensado”, explica.
Na avaliação dele, o debate sobre o assunto tende a tomar esse rumo, já que as divergências entre os defensores da redução da maioridade e os favoráveis à manutenção dos 18 anos como idade parecem mesmo insuperáveis. “É uma maneira de enfrentar a questão. A tese da redução pode ser discutida. A da emancipação penal é uma necessidade”, disse.
Punição em xeque
Fora do Congresso, a polêmica também é grande entre os especialistas no assunto. Coordenador do Movimento Nacional de Direitos Humanos e membro do Conselho Nacional da Criança e do Adolescente (Conanda), o advogado Ariel de Castro Alves diz que não procede a crítica de que o menor infrator não é punido no Brasil.
“O adolescente pode ser acompanhado, na prática, por até nove anos: três anos de privação de liberdade, outros três em semiliberdade e, ainda, mais três em liberdade assistida”, afirma. “O que inibe o crime não é o tamanho da pena. É a certeza da punição. O problema é que no Brasil apenas 10% dos crimes são investigados. O ECA surgiu para mudar a realidade. Não é a lei que tem de se adequar à realidade”, emenda Ariel.
Apenas crianças até 12 anos são inimputáveis, ou seja, não podem ser julgadas ou punidas pelo Estado no Brasil. Dos 12 aos 17 anos, o infrator é levado a julgamento numa Vara da Infância e da Juventude. Responsabilizado pelo ato, pode receber punições como advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade e internação em estabelecimento educacional, entre outras.
Já o sociólogo Antonio Testa, professor da Universidade de Brasília (UnB), que é favorável à redução da idade penal, atenta para o fato de criminosos recorrerem a menores para se livrarem da autoria de muitos dos seus crimes. “Hoje sou a favor da redução considerando as circunstâncias pelo uso de menores e pela impunidade. O crime contra o João Hélio foi o que chamou a atenção da sociedade. Além da barbárie, foi a oferta que o irmão mais velho fez para que fosse assumido o crime. E há muitos casos assim. Os infratores têm consciência de que vão ficar pouco tempo presos”, disse.
Há pouco mais de um mês, ainda sob a comoção causada pela tragédia do garoto João Hélio, os deputados aprovaram projeto de lei que agrava a pena para criminosos que usarem menores de idade nas ações criminosas. De acordo com o texto, o juiz decidirá em quanto será agravada a pena, dependendo do crime praticado.
Simultaneamente, a Comissão de Direitos Humanos do Senado acolheu projeto de lei do senador Aloizio Mercadante (PT-SP) que altera o Estatuto da Criança e do Adolescente, aumentando a punição prevista para quem “utilizar, induzir, instigar ou auxiliar” criança ou adolescente a praticar crimes. A proposta prevê que a pena (reclusão de quatro a 15 anos mais multa) será aumentada em um terço se o menor participante do crime sofrer lesão corporal de natureza grave.
A experiência internacional
A questão da maioridade penal tem um tratamento diferenciado mundo afora e varia de país para país. Cada nação tem soberania para decidir a partir de qual idade o jovem é punido por seus atos ilícitos. Isso leva conta fatores como economia e índice de criminalidade no país, por exemplo, como explica o diretor do Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime no Brasil e Cone Sul (UNODC), Giovanni Quaglia.
Em alguns países, como os Estados Unidos, a decisão é tomada por cada estado. Conforme a legislação estadual, a idade para responsabilização criminal pode ser de seis ou 14 anos. Em Portugal e na Argentina, a maioridade penal é fixada em 16 anos.
“Outros países também adotaram um sistema que varia conforme a situação, de acordo com o crime cometido e com o infrator. Na Alemanha, para infratores entre 18 a 21 anos, a decisão fica a cargo do juiz, que decide se o infrator terá pena do chamado código juvenil, com penas mais amenas, ou do código convencional, aplicado a partir dos 21 anos. No Reino Unido, para infratores entre dez e 21 anos, o juiz pode determinar se a pena será de adulto ou não”, conta o representante no Brasil das Nações Unidas. Segundo ele, a entidade recomenda aos países-membros que não baixem a responsabilização criminal para idades muito baixas, sem levar em conta a maturidade emocional e intelectual do jovem (leia mais).
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