Ah, Santa Rita de Cássia,
Tenha piedade de mim. Faz muito tempo que vivemos a mesma história, desde criança que a Senhora me acompanha. Nas minhas primeiras lembranças, lá na chácara de Osasco, a senhora bordejava num alo de luz que eu achava (até hoje…) vermelho. Essa visão sempre me hipnotizou. Até hoje é assim, lembro quando escrevi a palavra “suspensão” pela primeira vez, foi a Senhora quem veio me iluminar. Depois, foi parar no hall do apartamentão da rua Batataes, como se tivesse enriquecido e prosperado conosco. Eram quatro dormitórios, três vagas na garagem.
Um dia o velho Pascoal teve um infarto e o exportaram para Santos. A Senhora desceu a serra junto, lembra?
Era um apartamento grande também, na quadra da praia. Mas o rei do charque não suportava aquilo. O velho odiava morar em Santos. Ele cuspia caroços de azeitonas nos presépios da nonna Carmela – dizia que era cocô dos camelos. Não se conformava com a lei dos céus. O velho Pascoal blasfemava todos os dias aos seus pés – ele não dava trégua; quer dizer, só dava sossego quando o Palestra entubava os malditos maloqueiros. Aí ele fazia o sinal da cruz (ao contrário, porque não podia perder a piada) e mandava uma spernachia para os céus, para agradecer o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Que saudades. O aposentaram à revelia, tiraram o mercadão dele. Que saudades!, Santa Rita.
Tenho afeto pela Senhora, e um altar para venerá-la. O mesmo altar que guardo para rir das blasfêmias do velho Pascoal.
Quantos verões que morri de tesão junto às preces da nonna Carmela. O sol brilhando do lado de fora, e nós naquele apartamento quase de frente para o mar, trancados. A Senhora sabe. Quantas novenas em seu nome, as janelas fechadas, o cheiro das velas que empestavam as boas e as más intenções, meu pau gotejava as primeiras gotas de esperma & as empregadinhas eram denunciadas à policia & eu jamais consegui corresponder ao amor da nonna & jamais consegui provar a inocência das empregadinhas – infelizmente, Santa Rita, não controlamos as preces das pessoas que mais nos amam. Nem tampouco controlamos o ódio delas.
A Senhora também não sente assim, posso chamá-la de “minha” Santa Rita? Não sente assim?
Ah, minha Santa Rita de Cássia. Era a Senhora no alto do seu altarzinho nazista, lá no céu dos comerciantes estabelecidos, e o Pascoalão, o desossador, aqui na terra. O velho Pascoalão, meu avô. Que saudades.
Vivi essas histórias todas aos seus pés. E agora, depois de todo esse tempo que os velhos morreram, lembrei da Senhora. Senti sua falta. Fui achá-la encaixotada junto à prataria que mamãe herdou da vechia Carmela. De cabeça para baixo.
Ainda bem que a recuperei, o durepox ajudou a fixar o Cristo em seu colo – e de resto, creio que foi um milagre sadomasoquista o sulco que apareceu bem no meio do seu ventre. Obsceno, ostensivo, lúbrico. Suspeito que foi o candelabro italiano que abusou torpemente da senhora. Eu aposto que qualquer hora vai espirrar um cabrito desse talho. Um aborto sem pêlos, rosado, filho do candelabro italiano.
A senhora me perdoe, mas não vou fazer nada para corrigir essa aberração, talvez cante o o Sole Mio. Mais não posso fazer, lamento. Vocês sacaneiam a gente com as leis dos céus, e nós, aqui – chafurdando na miséria, e embaixo dos escombros – não podemos perder a oportunidade de dar o troco. Né?
Mesmo assim, minha Santa Rita de Cássia, a senhora vai ter piedade de mim? Ah, minha Santa Rita de Cássia, em nome das blasfêmias do velho Pascoal e dos dentinhos escuros do Papa Bento XVI, tenha piedade de mim.
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