Ocorreu-me a lembrança do condutor que vestia suspensórios, e que alegrava os gringos falando “gudi morninguis” macarrônicos e, junto ( ou logo acima dessa lembrança), veio o céu do Rio de Janeiro, do ponto de vista de quem se dependura nos estribos, joga um braço pra fora e olha pro alto, literalmente suspenso de vento e do azul do céu. Eu saltava na porta de casa. Não foram poucas as vezes que subi as ladeiras de Sta. Teresa meio bobo, turistão e completamente feliz.
A foto mostra o bonde espatifado, bem na curva, logo à direita da escadaria que liga a Joaquim Murtinho com a Francisco Muratori.
Quando lembro de Sta.Teresa, a primeira coisa que aparece diante de mim são os degraus dessa escadaria, como se aquele início de subida fosse o botão de start da memória . Imagino que Proust usava método parecido para não se livrar de si mesmo. Do ano que morei no Grajaú, por exemplo, um passarinho cisca em círculos na esquina da Engenheiro Richard com Mearim, e exerce – até hoje – a mesma função de ligar passado e presente. Em seguida, lembro de uma loja de pijamas na Pça.Verdun e do Paulinho boca de cadáver, zelador do prédio, que sempre me pedia cigarros (que eu não fumava) e cinco reais emprestados.
Pois bem, agora o lugar da melhor lembrança que guardo de Sta.Teresa é exatamente o lugar amaldiçoado que matou o motorneiro de suspensórios (Oh,Deus! será que foi ele?) e mais cinco pessoas, e deixou outras dezenas gravemente feridas. A notícia é que o bonde que fazia a linha Paula Matos-Centro descarrilou na altura do número 400, a partir daí seguiu em linha reta por cerca de cinquenta metros até se chocar com o poste localizado imediatamente antes da escadaria e bem na frente das minhas lembranças mais bonitas de Sta. Teresa, acima da ladeira da Francisco Muratori.
Numa noite de lua cheia, eu e o Edinho apostamos uma corrida ali, pra ver quem chegava antes, naquele mesmo poste. Lembra, Edinho?
Não me adaptei a Sta.Teresa, ao contrário do que pensava, o bairro é muito barulhento. Eu morava no 802 da Joaquim Murtinho, nos fundos da Chácara do Céu, antes do Largo do Curvelo, de frente para todos os barulhos da Lapa. Bom lembrar que aquilo ali é um vale. De onde ecoavam/ecoam diuturnamente a sinfonia da cachorrada histérica e o diabo do serralheiro da rua André Cavalcanti, lá na toca do gambá, quase bairro de Fátima. Aos sábados era tudo isso, mais os bailes funk. Como não conseguia reclamar com os cães nem com o serralheiro, nem pretendia apresentar Villa-Lobos aos meus vizinhos funkeiros, restava-me olhar pro Cristo da janela e pedir só um pouco de silêncio antes de mandar o cenário lindo pra pqp toda santa manhã ao acordar, e de noite também porque não conseguia dormir. Enquanto isso, as gaivotas bordejavam no céu mais bonito e azul do mundo, suspensas – as gaivotas e meus tímpanos – pela brisa que deve continuar soprando lá da baía de Guanabara. O Rio é lindo.
Mas como é que um lugar pode ser tão bonito e barulhento?
Quero dizer que – mesmo na remota hipótese de ter havido falha humana – acho uma canalhice pôr a culpa no motorneiro. Outra coisa. Suspender a circulação dos bondes, depois de consumada a tragédia, é algo mais estúpido, hipócrita e lamentável ainda. Mal comparando, é o mesmo que esvaziar uma piscina onde crianças se afogaram porque não havia rede de proteção.
Isso me dá um desânimo maior que o barulho todo do mundo, como se, agora, minhas lembranças dependessem de um laudo técnico, como se meu passado estivesse nas mãos de engenheiros e burocratas da Secretaria de Transportes, como se minha felicidade egoísta não pudesse existir mais naquele lugar desgraçado.
O ranger dos bondes que subiam e desciam a Joaquim Murtinho jamais incomodou. Ao contrário, foram os únicos ruídos amigos que me acompanharam naquele ano de solidão, azul do céu e contrariedade absolutas. Se o meu ódio e o meu amor tivessem um som, e se eu tivesse que responder a todos os ruídos de Sta Teresa, eu guincharia feito um bondinho descarrilado, condenado e sem freio. O velho número 10.
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