Rodrigo Telles de Souza*
A colaboração premiada, considerada de modo genérico e simplista como a concessão de benefícios em favor do réu ou investigado que preste auxílio à atividade estatal de prevenção e repressão à prática de crimes, ingressou no sistema jurídico brasileiro por meio da Lei dos Crimes Hediondos (Lei n.8.072/1990, art. 8o, parágrafo único). Desde então, essa figura jurídica passou por considerável evolução, que pode assim ser resumida, em ordem cronológica: a) foi tratada na antiga Lei de Organização Criminosa (Lei n. 9.034/1995, art. 6o); b) foi incluída pela Lei n. 9.080/1995 na Lei de Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional e na Lei de Crimes contra a Ordem Tributária, contra a Ordem Econômica e contra as Relações de Consumo (respectivamente, Lei n. 7.429/1986, art. 25, § 2o, e Lei n. 8.137/1990, art. 16, parágrafo único); c) foi inserida pela Lei n. 9.269/1996 no Código Penal, especialmente quanto ao crime de extorsão mediante sequestro (CP, art. 159, § 4o,); d) foi disciplinada na Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei n. 9.613/1998, art. 1o, § 5o); e) foi regulada pela Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas (Lei 9.807/1999, arts. 13 a 15); f) foi prevista nas recentes leis sobre tráfico ilícito de entorpecentes (Lei n. 10.409/2002, art. 32, § 2o e 3o, posteriormente revogada pela Lei n. 11.343/2006, art. 41); g) finalmente, recebeu tratamento mais detalhado e moderno na atual Lei de Organização Criminosa(Lei n. 12.850/2013, arts. 4o a 7o).
Anteriormente a 2013, as normas legais que cuidavam da colaboração premiada no Brasil limitavam-se a prever a possibilidade de concessão de determinados benefícios (em geral a redução de penas, a fixação de regime prisional mais benéfico, a substituição de penas privativas de liberdade por penas restritivas de direitos e o perdão judicial) ao réu ou investigado que auxiliasse na identificação de seus comparsas, na localização da vítima e na recuperação do produto do crime. Com o passar do tempo, na prática da prevenção e repressão a infrações penais, quando se estava diante da possibilidade de colaborações premiadas, tornou-se relativamente comum a formalização de acordos escritos entre o Ministério Público e a defesa, tendo por objeto a disciplina de aspectos dessa relação jurídica que envolve a concessão de benefícios penais ao colaborador em troca da prestação de auxílios investigativos às autoridades estatais. Tais acordos escritos, para maior segurança jurídica das partes, depois de formalizados, eram submetidos à homologação do juiz. A Lei n. 12.850/2013, ao inovar e regular expressamente o procedimento da colaboração premiada, procurou incorporar o que já vinha ocorrendo na realidade das investigações. De fato, a atual Lei de Organização Criminosa considera a colaboração premiada como um “acordo” (art. 4o, § 6o) que deve receber a chancela judicial (art. 4o, § 7o).
Exatamente depois da Lei n. 12.850/2013, ocorreu a maior expansão da colaboração premiada no Brasil, principalmente no âmbito da chamada “Operação Lava Jato”. Centenas de acordos celebrados ao longo da investigação permitiram desvendar esquemas criminosos amplos, complexos e interligados, revelando os meandros da corrupção sistêmica que acomete a Administração Pública brasileira e prejudica consideravelmente a sociedade há vários anos. A situação ensejou diversos questionamentos ao instituto da colaboração premiada e à prática adotada pelo Ministério Público para realização desse tipo de acordo. As discussões logo chegaram ao Supremo Tribunal Federal. A polêmica mais recente surgiu com uma decisão do Ministro Ricardo Lewandowski que devolveu à Procuradoria-Geral da República acordo de colaboração premiada celebrado com candidato a colaborador em desdobramento da “Operação Lava Jato” no Rio de Janeiro (PET 7265).
A decisão em referência parte do pressuposto de que a colaboração premiada é figura ou instituto jurídico oriundo dos sistemas jurídicos da família anglo-saxônica (common law) e que sua introdução em sistemas jurídicos da família romano-germânica (civil law), como o brasileiro, exigiria determinado filtro interpretativo. Segue afirmando que isso impediria a aceitação de inúmeras particularidades do acordo de colaboração premiada analisado, tais como: a) a fixação direta, no próprio acordo, dos benefícios do colaborador, com a especificação de penas e o estabelecimento do perdão judicial, uma vez que caberia apenas ao juiz concedê-los, por meio de sentença condenatória; b) a previsão, no acordo, de regimes de cumprimento de penas privativas de liberdade não dispostos em lei; c) a fixação direta, no próprio acordo, do valor da multa a ser paga pelo colaborador, pois caberia apenas ao juiz estabelecer o montante da sanção pecuniária, podendo as partes no máximo sugerir uma quantia a esse título; d) a impossibilidade de renúncia geral e irrestrita à garantia contra a autoincriminação e ao direito ao silêncio; e) a impossibilidade de desistência antecipada da apresentação de recursos. Houve manifestações na imprensados Ministros Marco Aurélio e Gilmar Mendes em favor dessa compreensão.
O entendimento do Ministro Ricardo Lewandowski, aparentemente, baseia-se em um modelo de colaboração premiada muito semelhante ao defendido pela Polícia Federal na ação direta de inconstitucionalidade na qual a Procuradoria-Geral da República questiona os dispositivos da Lei n.12.850/2013 que admitem a possibilidade de a autoridade policial celebrar esse tipo de acordo (ADI 5508). Para a Polícia Federal, a colaboração premiada não seria propriamente um negócio jurídico entre partes, com previsão de direitos e deveres. O candidato a colaborador prestaria informações e apresentaria provas à autoridade policial, que verificaria previamente a utilidade e a eficácia de tais elementos. Depois disso, a polícia formularia uma representação ao juiz relatando os fatos, expondo as provas e explicando as diligências de confirmação realizadas, concluindo ao final se o interessado faz jus aos benefícios de colaboração premiada legalmente previstos, cuja definição e aplicação no caso concreto, depois de ouvido o Ministério Público, caberiam exclusivamente ao julgador.
Esse modelo de colaboração premiada diverge frontalmente do adotado e consagrado pelo Ministério Público na “Operação Lava Jato” e em outras investigações de médio e grande porte. O modelo defendido pelo Ministério Público se baseia na concepção de que a colaboração premiada é um negócio jurídico processual por meio do qual as partes disciplinam especificamente seus direitos e deveres em torno da relação jurídica de concessão de benefícios penais em troca da prestação de auxílio investigativo. A partir disso, os acordos fixam diretamente os benefícios do colaborador, especificando penas e respectivos regimes de cumprimento, assim como sanções pecuniárias, prevendo, ao mesmo tempo, a renúncia ao privilégio contra a autoincriminação e à garantia ao silêncio, bem como a desistência de recursos e outros meios de impugnação incompatíveis com a solução consensual do litígio penal. No geral, ressalvadas algumas correções ocorridas ao longo do tempo, esse modelo de colaboração premiada tem sido aceito por outros ministros do Supremo Tribunal Federal, já tendo havido homologação de acordos celebrados nesses moldes, por exemplo: a) pelo Ministro Teori Zavascki e pelo seu sucessor, o Ministro Edson Fachin, em inúmeras ocasiões na “Operação Lava Jato”; b) pelo Ministro Dias Toffoli, na “Operação Custo Brasil” (desdobramento da “Operação Lava Jato” que trata de esquema de corrupção no Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão); c) pelo Ministro Luiz Fux, na “Operação Ararath” (que trata esquema de corrupção no Estado de Mato Grosso) e na “Operação Candeeiro” (que cuida de esquema de corrupção e desvio de recursos públicos na autarquia ambiental do Rio Grande do Norte); d) pela Ministra Cármen Lúcia, no caso dos acordos de colaboração premiada de executivos da Odebrecht celebrados na “Operação Lava Jato”, e na “Operação Sinal Fechado” (que trata de esquema de corrupção no Departamento Estadual de Trânsito do Rio Grande do Norte). De resto, tal modelo afigura-se mais compatível com a decisão recentemente tomada pelo plenário do Supremo Tribunal Federal, ao analisar acordo de colaboração premiada celebrado entre a procuradoria-geral da República e executivos do grupo empresarial J&F, segundo a qual, depois de homologado o negócio jurídico processual celebrado entre as partes, somente pode haver modificação dos termos da relação jurídica se houver descumprimento de direitos e deveres ou evidente ilegalidade (PET 7074).
Diante da clara discrepância entre integrantes do Supremo Tribunal Federal quanto ao tema e da própria indefinição da matéria na mais alta corte do país, torna-se necessário que haja um pronunciamento jurisdicional que dissipe ou pelo menos minimize as dúvidas, trazendo maior segurança jurídica em torno de questão tão relevante para a realidade das investigações criminais. O pressuposto em que se baseia o entendimento do Ministro Ricardo Lewandowski mostra-se incompatível com a evolução do direito. Atualmente, o fenômeno da globalização já produziu significativos efeitos no campo jurídico, de modo que não se fala mais em diferenças profundas entre sistemas jurídicos de tradição anglo-saxônica (common law) e sistemas jurídicos de tradição romano-germânica (civil law). Institutos e figuras de um tipo de sistema jurídico são exportados e incorporados ao outro tipo e vice-versa. De acordo com a ilustrativa expressão do jurista italiano Mauro Cappelletti, observa-se uma verdadeira “convergência evolutiva” entre as duas famílias jurídicas: common law e civil law (Juízes legisladores? Porto Alegre: Safe Editor, 1993, p. 123-124). Estabelecer uma separação rígida entre as duas tradições é situar-se na contramão da história. O direito brasileiro já recebeu adaptações consideráveis provenientes do sistema anglo-saxônico, como a valorização dos precedentes jurisprudenciais por meio da súmula vinculante e dos recursos repetitivos, sem maiores questionamentos quanto a tais figuras. Não poderia deixar de ser diferente quanto à colaboração premiada.
O Tribunal Europeu de Direitos Humanos, destacando que a imensa maioria dos países europeu, seja de tradição jurídica anglo-saxônica, seja de tradição jurídica romano-germânica, aceita soluções negociadas (plea bargain) entre as partes no processo penal, já decidiu que esses “espaços de consenso” são compatíveis com o direito a um processo justo, desde que observadas algumas garantias (caso Natsvlishvili e Togonidze v. Georgia, application n. 9043/05, julgado em 08/09/2014). Na perspectiva da globalização do direito, a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (art. 26) e a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (art. 37), ambas subscritas e promulgadas pelo Brasil, bem como por vários outros países, estabelecem a obrigação de os estados partes adotarem técnicas de estímulo e proteção a colaboradores, inclusive mediante a concessão de benefícios penais negociados. A própria Constituição brasileira de 1988, em seu art. 98, inciso I, admite expressamente a possibilidade de conciliação em casos de infrações penais de menor potencial ofensivo, preceito concretizado por meio dos institutos da transação penal e da suspensão condicional do processo (arts. 72 e 89 da Lei n. 9.099/1995), tendo até hoje sido realizados os mais diversos acordos desse tipo, inclusive com a fixação direta de penas e condições pelas partes, sem maiores discussões quanto à validade de tal espécie de solução autocompositiva do conflito criminal.
Por outro lado, atribuir ao juiz a competência exclusiva de definir benefícios e fixar penas e multas corresponde a retirar da colaboração premiada seu aspecto negocial. O instituto só pode ser entendido como um acordo se houver possibilidade de as partes – acusação e defesa – chegarem a um consenso sobre como pode ser resolvida a lide penal. A definição da forma de resolução negociada de tal conflito de interesses passa necessariamente pela possibilidade de essas mesmas partes especificarem as penas privativas de liberdade ou restritivas de direitos e as sanções pecuniárias a que deve submeter-se o colaborador. Os benefícios legalmente previstos, no atual sistema jurídico brasileiro, conferem uma ampla margem de manobra nesse aspecto, admitindo, inclusive por meio da concessão de benefícios diferentes para crimes diversos, que se chegue a penas concretamente fixadas e a multas precisamente estipuladas. Se a fixação dos benefícios ficar a cargo do juiz em uma eventual sentença condenatória, o colaborador ficará submetido a um estado de insegurança jurídica que constitui fator de desestímulo à colaboração. Os ônus de uma colaboração premiada, envolvendo desde o constrangimento social até o risco à vida e à integridade física do colaborador, são evidentemente desproporcionais à incerteza de um benefício a ser futuramente definido e fixado por um juiz. Por outro lado, a estipulação da sanção pecuniária apenas em uma longínqua sentença condenatória torna mais demorada e duvidosa a reparação dos danos causados pelo crime, o que é particularmente preocupante em casos de delitos contra a Administração Pública. Toda essa situação que acaba se orientando em sentido contrário aos princípios constitucionais da efetividade da tutela judicial e da celeridade processual (art. 5o, incisos XXXV e LXXVIII, da Constituição de 1988).
Quanto ao questionamento referente à previsão negocial de regimes de cumprimento de pena não dispostos em lei, o que se observa é que os acordos de colaboração premiada apenas se ajustam à realidade brasileira, em que os regimes previstos na Lei de Execução Penal são uma autêntica ficção. O regime fechado, com as garantias previstas em lei, praticamente não existe, havendo em regra penitenciárias superlotadas, sem condições mínimas de salubridade e muito menos de ressocialização do detento. O regime semiaberto conta com notória deficiência de vagas em colônias agrícolas, industriais ou similares, recorrendo-se a alternativas como o cumprimento da pena em prisão domiciliar, mediante monitoramento com tornozeleira eletrônica. Em relação ao regime aberto, as casas de albergado são quase inexistentes no território nacional, o que leva a que se atribua ao apenado, frequentemente, mero comparecimento periódico ao juízo da execução. Assim, os regimes “diferenciados” previstos em acordos de colaboração premiada em nada ou em muito pouco se distinguem do que acontece na realidade,terminando, ainda, por concretizar de maneira mais eficaz o próprio princípio constitucional da individualização da pena (art. 5o, inciso XLVII, da Constituição de 1988), em face da possibilidade de melhor adaptação às particularidades de cada colaborador.
No que diz respeito à renúncia ao privilégio contra a autoincriminação e ao direito ao silêncio, trata-se do principal motivo pelo qual o Estado se interessa em realizar um acordo com um criminoso. Os benefícios penais são concedidos ao colaborador exatamente porque ele, renunciando a tais garantias, -se a revelar fatos e fornecer provas que trazem proveito à atividade de prevenção e repressão à prática de crimes. Sem a renúncia ao privilégio contra a autoincriminação e ao direito ao silêncio não haverá como exigir e assegurar que o colaborador fale a verdade. As autoridades de investigação criminal não terão segurança jurídica alguma. Não haverá motivo, do ponto de vista do Estado, para que seja celebrado um acordo de colaboração premiada nesses termos. Quanto à desistência de recursos e outros meios de impugnação, os acordos de colaboração premiada só preveem esse tipo de medida em relação a atitudes que sejam incompatíveis com a solução negociada do litígio penal. Seria contrário à boa-fé objetiva, à lealdade que se espera de um colaborador, se ele celebrasse um acordo de colaboração premiada, adotando uma estratégia defensiva de natureza consensual, e, ao mesmo tempo, por exemplo, impugnasse uma sentença que reconheceu a prática de crimes por ele confessados, que o condenou e que aplicou os termos do acordo em seu favor, seguindo uma defesa de caráter contencioso. Independentemente da existência de cláusula de desistência, um recurso desse tipo infringiria a proibição geral de conduta contrária a atos próprios (nemo potest venire contra factum proprium) e possivelmente não preencheria o requisito de admissibilidade do interesse recursal. De resto, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos já decidiu que o direito a um julgamento justo não impede que uma pessoa abra mão de seus direitos e de suas garantias, expressa ou tacitamente, em um acordo no processo penal (caso Scoppola v. Itália n. 2, application n. 10249/03, julgado em 17/09/2009).
Assim, o modelo de colaboração premiada aparentemente concebido pela decisão do Ministro Ricardo Lewandowski (na PET 7265) e pela Polícia Federal (na ADI 5508) – que pode ser designado como modelo legal de colaboração premiada –, ao atribuir ao juiz a competência exclusiva de definir benefícios e fixar penas, de um lado, e ao questionar a renúncia ao privilégio contra a autoincriminação e ao direito ao silêncio como elemento essencial da colaboração premiada, de outro, afeta seriamente as bases negociais do instituto, gerando insegurança para ambas as partes envolvidas no conflito de interesses penal. Esse modelo tende a desestimular a adoção da colaboração premiada como técnica especial de investigação e como estratégia defensiva, distanciando-se do cumprimento do dever constitucional de segurança pública (art. 144 da Constituição de 1988) e desprestigiando o princípio constitucional da ampla defesa (art. 5o, inciso LIV, da Constituição de 1988). Ele é próprio do sistema jurídico brasileiro anterior à Lei n. 12.850/2013, quando a colaboração premiada ainda era considerada não como um acordo, mas sim como mero benefício legal.
A recente expansão da colaboração premiada, na conformidade do modelo defendido pelo Ministério Público e consagrado por outros ministros do Supremo Tribunal Federal – que pode ser designado como modelo negocial de colaboração premiada –, viabilizou às autoridades estatais a aquisição de conhecimento amplo e profundo sobre as particularidades de esquemas criminosos complexos, duradouros e institucionalmente entranhados, incrementando a experiência e a eficiência investigativa do Estado. Por outro lado, as revelações dos colaboradores, especialmente relacionadas a agentes políticos, permitiram à sociedade brasileira saber exatamente como funciona o seu sistema eleitoral e de que forma agem os representantes do povo. Os acordos de colaboração premiada, desse modo, consistiram em relevantes instrumentos de implementação do princípio constitucional do acesso à informação (art. 5o, inciso XIV, da Constituição de 1988).
Nessa perspectiva, vem à mente a famosa alegoria da caverna, tratada em diálogo entre Platão e seu irmão Glauco (A República. São Paulo: Nova Cultural, 1997, p. 225-228). Platão concebe uma situação imaginária em que no interior de uma caverna permanecem seres humanos que nasceram e cresceram ali. Eles ficam de costas para a entrada, acorrentados, sem poder mover-se, forçados a olhar somente a parede do fundo da caverna, sem poder ver uns aos outros ou a si próprios. Atrás dos prisioneiros há uma fogueira, separada deles por um muro baixo, por detrás do qual passam pessoas carregando objetos que representam homens e outros seres. As pessoas caminham por detrás da parede de modo que os seus corpos não projetam sombras, mas sim os objetos que carregam. Os prisioneiros não podem ver o que se passa atrás deles e veem apenas as sombras que são projetadas na parede à sua frente. Desse modo, os prisioneiros julgam que essas sombras sejam a realidade. Platão cogita na hipótese de um desses prisioneiros ser libertado e, fora da caverna, conseguir ver o fogo e os objetos cujas sombras eram projetadas na parede. De início, esse prisioneiro terá que se acostumar com a luz e, em seguida, passará a ver melhor as coisas, percebendo que a realidade é bem distinta das sombras. Depois, se ele tiver que retornar à caverna, terá que habituar-se novamente com a escuridão. Enquanto isso, certamente entrará em discussão com os demais prisioneiros sobre se a verdadeira realidade estaria na luz ou nas sombras e provavelmente será considerado ridículo, podendo até mesmo ser executado pelos outros prisioneiros.
O modelo negocial de colaboração premiada assemelha-se ao prisioneiro libertado, que conseguiu ver a luz e os objetos na claridade, revelando os mais diversos aspectos da estrutura e do funcionamento da corrupção que, há muito tempo, está na base do sistema político-eleitoral brasileiro. É importante evitar que o modelo em questão seja aniquilado pelo modelo legal de colaboração premiada, atrelado às tradições jurídicas e ideológicas do passado, bem menos eficiente, capaz de enxergar apenas a sombra das ilicitudes que sistematicamente são cometidas contra a Administração Pública e a sociedade brasileira em geral.
Não se defende que o modelo negocial de colaboração premiada seja algo atualmente perfeito e acabado. Longe disso. Ele ainda precisa de correções e aperfeiçoamentos, especialmente quanto a uma melhor formalização procedimental, a uma maior clareza, coerência e uniformidade dos critérios usados para definição de benefícios e fixação de penas e multas, bem como à estipulação de parâmetros e procedimentos para avaliação e controle da eficácia dos acordos. No entanto, eventuais deficiências não são motivos para abandono do modelo em favor do modelo legal de colaboração premiada. Cumpre empreender esforços para suprir ou pelo menos minimizar as falhas do modelo negocial de colaboração premiada, sem descartá-lo, em virtude de suas maiores vantagens.
Diante da ampla disseminação do instituto nos últimos anos, envolvendo inclusive diversas autoridades com foro por prerrogativa de função, o Supremo Tribunal Federal terá muitas oportunidades de se pronunciar sobre a colaboração premiada. A ocasião mais próxima será nesta quarta-feira (dia 07/12/2017), quando se realizará o julgamento da ADI 5508. Nesse caso, mais importante do que saber se a polícia pode ou não celebrar acordos com colaboradores – parecendo mais razoável e eficaz que tanto o Ministério Público como a autoridade policial participem do procedimento negocial, conjuntamente, cada um em sua esfera de atribuições predominantes, o primeiro na negociação dos benefícios, a segunda na confirmação de informações do colaborador – é definir que modelo de colaboração premiada deve ser adotado no Brasil. Espera-se que a maioria dos ministros volte os olhos para a luz e deixe as sombras para trás.
*Rodrigo Telles de Souza é procurador da República e ex-integrante do grupo de trabalho da Operação Lava Jato na PGR
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