O título não é vingança. Porém o caro leitor ou a cara leitora devem se lembrar que na XVII Conferência Ibero-Americana, em 2007, na cidade de Santiago, Chile, o rei Juan Carlos I, da Espanha, mandou o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, calar a boca. A frase curta (“¿Por qué no te callas?”) correu o mundo e fez a alegria da direita, principalmente sul-americana. Imagino que à época parte da direita brasileira chegou até a soltar foguetes. Cinco anos depois, na XXII Conferência, o rei pediu arrego aos ibero–americanos. Ou melhor, aos sul-americanos.
Na semana passada, nos dias 15 e 16, a presidenta Dilma Rousseff esteve em Cádiz, Espanha, com os demais governantes ibero-americanos (com as exceções de Cristina Fernandez, Argentina; José Mujica, Uruguai, e Hugo Chávez, Venezuela), para participar da XXII Conferência. Imagine a alegria de Chávez se lá estivesse vendo o rei pedir arrego.
Também fui recentemente a Cádiz, pouco antes da presidenta, para participar da Assembleia Parlamentar Euro-Latino-Americana (Eurolat). Lá, me reuni com vários parlamentares, dirigentes e intelectuais da esquerda e centro-esquerda europeia, e numa destas reuniões a pauta preferencial era a fome na América Latina. Diria justa a preocupação, mas ocorre que não se fez nenhuma observação sobre as dificuldades e o empobrecimento que os europeus atualmente enfrentam.
A reunião começou com a exposição de um intelectual, creio que militante de uma ONG. Falou sobre a exploração mineradora na América Latina. Foi bastante crítico aos Estados latino-americanos por não cobrarem das mineradoras o que deviam em termos de impostos e pelas consequências das ações dessas empresas no meio ambiente e no social. Concordo com ele.
O intelectual então chamou a atenção para a fome e a corrupção na América Latina. Citou, sem dar cifras, os famélicos da América, mas ignorou o que ocorre na Europa e especificamente na Espanha.
Pelas ruas e praças de Cádiz, principalmente em frente às igrejas, há vários pedintes. Pelas roupas que usam, dá para ver que se tornaram pobres recentemente, pois a pobreza chega primeiro ao estômago, só depois à roupa. São homens, alguns jovens, desempregados (o desemprego entre a juventude espanhola passa de 50% em algumas regiões), com roupas de “classe média”, que colocam à frente de si mesmos cartazes onde informam que pedem esmolas para dar de comer às suas famílias, principalmente aos filhos.
Não tenho todos os dados econômicos e sociais da Europa, mas o jornal El País de 16 de novembro dá uma amostra. Ele traz uma matéria de Vicente Palacio com o título-interrogação: “Trens em via morta?”. Logo na primeira frase, afirma que “duas décadas depois do primeiro Encontro Ibero-americano, o Brasil é uma grande potência […]. Espanha e Portugal estão cada vez mais irreconhecíveis”. Pois é, mas nas reuniões de que participei em Cádiz esta situação foi ignorada: nenhuma vírgula foi dita sobre a situação econômica e social da Europa.
Palácio afirma que “empresas e bancos são cada vez menos espanhóis e mais latino-americanos”. Escreve também que os países ibero-americanos conheceram todas as mazelas do modelo neoliberal, e que no encontro da semana passada, do qual a presidenta Dilma participou, a Espanha procurava conseguir o apoio dos latino-americanos para defender-se do modelo neoliberal ante Bruxelas (leia-se União Europeia) e Berlim. Para essa defesa, há que fazer como o Brasil: adotar ações anticíclicas, coisa que até o momento nenhum governante europeu teve coragem de fazer.
Segundo Miguel González, no mesmo El País do dia 16, o chamamento do rei espanhol na Conferência soou como uma súplica e o reconhecimento de que já passou a época que a Espanha se permitia dar conselhos. Acrescento eu: não só queria dar conselhos, mas de maneira grosseira mandava um governante legitimamente eleito calar a boca.
A situação de alguns países europeus é de crise profunda. Pela primeira vez em 35 anos a Europa está diminuindo o gasto em saúde pública. Esta é a constatação do estudo realizado em 2012 pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e a Comissão Europeia, ainda no El País do dia 16. O trabalho mostra que entre 2009 e 2010 o gasto per capita em saúde pública na Europa caiu 0,6%, contrastando com o período 2000-2009, quando houve um crescimento de 4,6%, acima, inclusive, do aumento do Produto Interno Bruto.
O estudo da OCDE e da Comissão Europeia destaca também o corte de gastos em ações de prevenção. Em 2010, só 3% do orçamento sanitário foi destinado a vacinação e prevenção no geral, como do tabagismo e do alcoolismo.
Na abertura da Conferência Ibero-Americana deste ano, o rei Juan Carlos I pediu para aprofundar a cooperação entre os países ibero-americanos para “se fazer ouvir no mundo uma só voz”.
Pergunto: depois de o mandar calar, será que agora o rei quer junto a voz de Hugo Chávez?
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