Rudolfo Lago
“DEMOCRACIA – É muito difícil chegar até ela”. Assim eu começava a matéria que descrevia a minha cobertura do segundo turno das eleições presidenciais de 1989. Repórter de Política na Sucursal de Brasília do jornal O Estado de S.Paulo, eu tinha sido deslocado para acompanhar o segundo turno a partir de Democracia, uma comunidade de extração de castanha do Pará e pau-rosa (matéria-prima para a composição de extratos de perfumes) no meio da selva amazônica, próxima do município de Manicoré (AM). A minha ideia, ao descrever o périplo de dois dias consumidos para chegar até Democracia era fazer daquilo uma metáfora do longo caminho também percorrido pelo país para chegar até aquela eleição. No meu caso, três horas e meia de voo num grande jato comercial de Brasília até Manaus. Mais duas horas e meia de voo, na manhã do dia seguinte, num bi-motor até Manicoré. Depois, mais seis horas num barquinho a motor subindo o rio Madeira até chegar a Democracia. No caso do Brasil, 22 anos de ditadura militar e centenas de mortos e desaparecidos, Congresso fechado, políticos cassados, generais presidentes, caso Riocentro, campanha das Diretas, morte de Tancredo Neves, governo Sarney. “Democracia” evocava o lugar de onde a matéria havia sido escrita, no padrão clássico utilizado pelos jornais. E fosse qual fosse a leitura, ninguém tinha dúvida do quanto difícil era chegar até ela.
Foi uma bela experiência. Naquela época, não havia ainda nem luz nem televisão em Democracia. Os eleitores acompanhavam a campanha pelo rádio. Eu e o fotógrafo André Dusek chegamos a conversar com eleitores que não sabiam quem era o candidato barbudo e qual era o narigudo bonitão com cara de galã de cinema. Como na maior parte do país, Fernando Collor venceu também a eleição nas duas urnas de Democracia. Urnas que chegaram de barco de manhã cedo e foram instalados na escola da comunidade.
A minha presença em Democracia naquele segundo turno era um produto do caminho surpreendente que aquela eleição tomou. Quando a cobertura da campanha foi idealizada no início de 1989 ninguém apostaria que os dois nomes no segundo turno seriam Fernando Collor e Luiz Inácio Lula da Silva. Três redações do Estadão se envolveriam diretamente na cobertura: São Paulo, Brasília e Rio. A escolha dos repórteres de cada sucursal se daria de acordo com o local que cada candidato usaria de base para a sua campanha. Os principais candidatos teriam dois repórteres colados neles aonde quer que fossem. No começo da campanha, Collor não era sequer um dos candidatos que teria esse acompanhamento direto. Ele, junto com os menores, ganharia cobertura eventual. Brasíla cobriria Ulysses Guimarães e Aureliano Chaves. São Paulo cobriria Lula, Mário Covas e Paulo Maluf. O Rio cobriria Leonel Brizola.
Eu, inicialmente, fiquei com a responsabilidade de cobrir Aureliano. Alguns meses depois, se percebeu que a campanha do vice-presidente de João Figueiredo pelo PFL não iria a lugar nenhum. Ganhei a inimizade de Aureliano, que não aceitava a profusão de matérias que o Estadão fazia mostrando as mazelas da sua fraca campanha. Quando relatei que o apelido de Aureliano em algumas parcelas do PFL era “Dumbo” (pesadão, achava que podia voar), um assessor dele ameaçou me bater. Somente quando Marcondes Gadelha, Edison Lobão e Hugo Napoleão o abandonaram no caminho para tentar a aventura de fazer de Sílvio Santos candidato a presidente é que Aureliano percebeu que eu não era assim tão injusto com ele.
Após o episódio Sílvio Santos, o quadro eleitoral já exigia um novo desenho de cobertura. Aureliano era um dos “nanicos” que merecia apenas cobertura eventual. E Collor precisava de acompanhamento diário. As peças mudaram de lugar, e eu saí de Aureliano para acompanhar um outro fracasso: a candidatura de Ulysses Guimarães. Na verdade, ali vislumbrava-se o embrião do que viria a se tornar o PMDB: uma reunião de caciques regionais, com interesses apenas estaduais, sem uma unidade capaz de conduzir a bom termo uma campanha presidencial.
A campanha de Ulysses era uma sucessão de rusgas e brigas. Ulysses e seu vice, Waldir Pires, discordavam em quase tudo. As desavenças entre eles refletiam-se em cada setor, na sala de cada assessor. A turma de Ulysses trabalhava para Ulysses, a turma de Waldir trabalhava para Waldir. E, nos estados, os caciques, como Orestes Quércia, em São Paulo, trabalhavam para eles mesmos.
Se o eleitor errou na escolha – ao eleger um produto de marketing que conhecia pouco, de quem tinha poucas informações, apenas pela estampa e não pelo que efetivamente defendia e pensava –, havia na escolha de Collor e de Lula para o segundo turno uma intenção de renovação cristalina. Com um otimismo contagiante, que se verificava numa campanha que as posteriores não chegaram nem perto em termos de emoção, de empatia. Os eleitores queriam passar uma borracha no passado, queriam mergulhar de cabeça no novo, queriam recomeçar. Por isso, rejeitaram os que tinham ligação com o velho, de um lado e de outro. Mesmo fazendo injustiças com os que tanto lutaram por aquele momento, como Ulysses, Covas e Brizola. O resultado – com a boa fé que havia nele – é fruto da inocência de uma população que ainda acreditava no bem vencendo o mal. Nesses tempos em que Lula se coloca no lugar de Jesus Cristo e diz que ele, no seu lugar, teria de fazer aliança com Judas, me bate uma imensa saudade daqueles tempos!
[…] novembro de 1989. Enquanto 82 milhões de eleitores brasileiros voltavam às urnas para a primeira eleição presidencial direta desde o golpe militar de 1964, mais de 300 jornalistas que cobriam as atividades da Câmara, do […]