Celso Lungaretti*
A época de ouro dos festivais de música popular vai até 1968, pois em dezembro daquele ano o Brasil entrou no inferno do AI-5 e os artistas, intimidados e censurados, não puderam mais exercer verdadeiramente seu ofício.
O canto do cisne do período de maior efervescência musical que o país já conheceu foi o III Festival Internacional da Canção, da Rede Globo, realizado em setembro de 1968, em meio a passeatas que degeneravam em batalhas campais, mortes de opositores da ditadura, denúncias de torturas, ações armadas da esquerda, atentados dos grupos para-militares de direita (o Comando de Caça aos Comunistas acabara de espancar o elenco da peça Roda Viva) – a ante-sala do inferno, enfim.
O então influente Jornal da Tarde (SP), naquele final de 1968, dia após dia dedicava suas manchetes e principais matérias ao “terrorismo”, fazendo alarmismo para enlouquecer a classe média e favorecer a linha dura militar na luta interna em que se decidia o rumo do regime.
Pode-se pensar em festivais num momento desses?
Pode-se. E isto ficou claro quando Geraldo Vandré apresentou na eliminatória paulista sua “Pra Não Dizer Que Não Falei de Flores” (ou, simplesmente, “Caminhando”) – canção-desagravo, hino revolucionário, síntese e depuração de tudo que já se fizera em termos de protesto político no Brasil.
Vandré atravessava uma fase difícil, rompido com as emissoras de maior audiência junto ao público de MPB (TV Record e rádio Jovem Pan), amargando uma desilusão amorosa, sendo hostilizado e gelado pelos estudantes de esquerda.
Fora-lhe muito danosa a publicação de uma foto no jornal Folha da Tarde, na qual aparecia abraçado a Abreu Sodré, ajudando-o a escafeder-se do palco armado na praça da Sé, após ser apedrejado por manifestantes.
Governador biônico (imposto pela ditadura), Sodré tentara falar num ato comemorativo do 1º de maio, sendo surpreendido por uma reação organizada pelos movimentos operários do ABC e de Osasco, com o apoio dos estudantes.
Vandré era amigo do governador, que, inclusive, o esconderia mais tarde no próprio Palácio dos Bandeirantes, quando a repressão o perseguia. Mas, claro, preferia que essa ligação perigosa não se tornasse de domínio público. A mim e a alguns companheiros secundaristas, semanas depois, deu uma desculpa esfarrapada: “Estava bêbado. Não me lembro de nada do que fiz naquele dia”.
O certo é que, tido como artisticamente morto, Vandré enfrentou e venceu o maior desafio de sua carreira. Por conta disto, passou definitivamente à condição de mito, mas foi destruído como pessoa.
Questão de ordem: o tropicalismo se radicaliza
Para elevar ainda mais a temperatura, os baianos resolveram fazer uma correção de rumo no tropicalismo, que, ao ser lançado no ano anterior, parecia pregar o desengajamento dos jovens da política revolucionária, por que não?
O modelo 1968, entretanto, veio fortemente influenciado pela Primavera de Paris, o movimento neo-anarquista que levou a França às portas da revolução.
Aliás, foi um slogan das barricadas parisienses o ponto-de-partida da composição inscrita por Caetano Veloso no III FIC: “É proibido proibir”. O estribilho já veio pronto, mas os versos que ele criou foram corrosivos, geniais: “Me dê um beijo, meu amor/ Eles estão nos esperando/ Os automóveis ardem em chamas/ Derrubar as prateleiras/ As estantes, as estátuas/ As vidraças, louças, livros, sim/ E eu digo sim/ Eu digo não ao não/ Eu digo, é proibido proibir”.
Gilberto Gil seguiu o mesmo diapasão em “Questão de Ordem”, enfocando situações vividas pelos contestadores agrupados nas comunidades alternativas da Europa: “Se eu ficar em casa/ Fico preparando/ Palavras-de-ordem/ Para os companheiros/ Que esperam nas ruas/ Pelo mundo inteiro/ Em nome do amor”.
A maior parte da esquerda brasileira, entretanto, via com desconfiança esse anarquismo de classe média do 1º mundo; e com franca hostilidade às roupas coloridas, os cabelos desgrenhados, as guitarras elétricas. Preferia os ritmos nativos, do samba carioca à riqueza musical nordestina; e o visual bem comportado, com os intérpretes se apresentando discretamente para não atrapalharem a compreensão da mensagem que os versos transmitiam. Era esta a tendência majoritária na eliminatória paulista, que teve lugar no Tuca.
Ao final, quando da execução das cinco escolhidas para a final no Rio de Janeiro, Caetano Veloso, que já estava indignado com a não-classificação da música de Gil, explodiu de vez diante das ensurdecedoras vaias que o impediam de reapresentar adequadamente “É Proibido Proibir”. E fez o discurso célebre, que foi lançado até em disco:
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– Mas, é isto que é a juventude que diz que quer tomar o poder? É a mesma juventude que vai sempre, sempre, matar amanhã o velhote, o inimigo que morreu ontem. Vocês não estão entendendo nada! (…) Nós tivemos a coragem de entrar em todas as estruturas e sair delas. Se vocês forem em política como são em estética, estamos feitos!
Injustiças de festival e sabiá intemporal
A finalíssima, no Maracanãzinho, apresentou algumas músicas de qualidade superior. Como “O Sonho”, estréia daquele que seria um dos maiores nomes da MPB na década seguinte. O Jornal da Tarde se referiria ao ”menino Egberto Gismonti” como “um talento”, destacando a letra de “O Sonho” como a melhor dentre as inscritas por compositores que não atuavam em São Paulo, além da “muito boa harmonia e um ótimo arranjo”.
Os Mutantes compareceram com um trabalho de qualidade e impacto, “O Caminhante Noturno”, um dos ápices do seu início de carreira. O sexto lugar não lhes fez justiça.
Toquinho e Paulo Vanzolini foram prejudicados pelo clima de festival, com platéia e júri tomados por emoções fortes, sem paciência para apreciar a sutileza e cristalina beleza de “Na Boca da Noite” (“Cheguei na boca da noite, parti de madrugada/ Eu não disse que ficava nem você perguntou nada/ Na hora que eu ia indo, dormia tão descansada/ Respiração tão macia, morena nem parecia/ Que a fronha estava molhada”).
Vista retrospectivamente, a sua classificação em oitavo lugar, atrás de “Andança” (Danilo Caymmi e Edmundo Souto, 3º), “Passacalha” (Edino Krieger, 4º), “Dia da Vitória” (Marcos e Paulo Sérgio Valle, 5º) e “Dança da Rosa” (Maranhão, 7º) nos dá um testemunho eloqüente sobre a incompetência do júri mais vaiado da história dos festivais.
Outras injustiçadas: “Canção do Amor Armado”, concepção grandiosa de Sérgio Ricardo, relegada a um irrisório nono lugar; “Oxalá”, ótima elaboração de uma história de capoeiristas, de autoria de Théo de Barros; e “América, América”, épico com que César Roldão Vieira reverenciou a figura mítica de Che Guevara.
“Sabiá” é um capítulo à parte. Trata-se de uma música intemporal, como quase tudo que Chico Buarque fez naquele período conturbado. Não que “Carolina”, “Bom Tempo”, “Bem-Vinda” e que tais fossem desprezíveis, longe disto. Mas, com seu romantismo óbvio, sensibilizavam o público alheio à efervescência política de então e a toda a evolução da MPB nos anos 60.
Serviam de contraponto a uma realidade explosiva (críticos reacionários chegavam a apontar Chico como alternativa aos engajados e aos tropicalistas). Tanto nas idéias como na forma, eram músicas velhas – embora assinadas por um talento superior.
Não sem motivo, Chico Buarque se penitenciaria mais tarde, com a autocrítica “Agora Falando Sério” (“Agora falando sério/ Eu queria não mentir/ Não queria enganar/ Driblar, iludir/ Tanto desencanto/ E você que está me ouvindo/ Quer saber o que está havendo/ Com as flores do meu quintal?/ O amor-perfeito, traindo/ A sempre-viva, morrendo/ E a rosa, cheirando mal”).
Último ato: público indignado, júri pressionado
“Sabiá”, de Tom Jobim e Chico, na interpretação de Cynara e Cybele, foi a surpreendente vencedora. O grande repórter Walter Silva, que esqueceu um gravador ligado na sala de deliberação, revelou depois na Folha da Tarde que o presidente do júri, Donatelo Grieco, pressionou os demais jurados, advertindo-os de que os militares não aceitariam a vitória de “músicas que fazem propaganda da guerrilha”, como “Caminhando” e “América, América”.
Quando a preferida do público foi anunciada em segundo lugar, o Maracanãzinho explodiu numa monumental vaia, entremeada de gritos de “Vandré!”, “Vandré!”.
Havia motivo. Reprimindo uma manifestação de rua, soldados haviam submetido estudantes a terríveis humilhações (chegaram a urinar sobre os jovens rendidos e a bolinar as moças). Isto despertou indignação generalizada na cordialíssima cidade maravilhosa. O FIC aconteceu logo depois e os cariocas adotaram “Caminhando” como desagravo. Vandré teve muito mais torcida lá do que em São Paulo.
Por mais que tentasse, ele não conseguiu convencer o público a respeitar Chico, Tom e as duas meninas do Quarteto em Cy, direcionando sua ira apenas contra o “júri que ali está”. E, com clarividência, proferiu a frase célebre: “A vida não se resume em festivais”. Só não adivinhou que seria uma das primeiras vítimas da vida pós-festivais, quando os holofotes da arte não conseguiriam mais espantar as trevas.
Em alguns bairros da Zona Sul, as pessoas saíram às janelas quando Vandré bisava a “Caminhando” e cantaram junto, a plenos pulmões, descobrindo uma comunhão cimentada pela dor e revolta – que tão cedo não se repetiria.
*Celso Lungaretti, 56 anos, é jornalista em São Paulo, com longa atuação em redações e na área de comunicação corporativa, e escritor. Escreveu Náufrago da utopia (Geração Editorial, 2005). Mais dele em http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/.
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