Germano Silveira de Siqueira *
A comissão mista responsável por análise de medidas provisórias, incorporando manobra parlamentar inaceitável, aprovou no último dia 1º de outubro o Projeto de Lei de Conversão 18/2015, introduzindo no texto matéria estranha (o “jabuti”, na gíria parlamentar), que dispõe sobre a prevalência do negociado sobre o legislado.
Trata-se de acréscimo ilegítimo na Medida Provisória 680/2015 que, a rigor, originariamente disciplina a possibilidade de o Poder Executivo compensar pecuniariamente, via recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), os trabalhadores que entrarem em acordo com as empresas para reduzir salários e jornada de trabalho.
Esse é o objetivo da medida provisória, já que a negociação coletiva a esse respeito não carece de disciplina legal, uma vez que está prevista na própria Constituição (artigo 7º, incisos VI e XIII).
A Anamatra já manifestou divergência com o texto da MP 680 desde a origem, seja pela desnecessidade de seu implemento agora, do ponto de vista negocial, seja pela própria impertinência política de abrir um debate sobre crise estrutural de empregabilidade, uma vez que a realidade brasileira (desemprego em 7,5%) não está a ponto de merecer intervenção drástica, já que mesmo em uma realidade de taxas históricas mais severas (com 20%, 12,5% e 10% , observadas tempos atrás, alguns desses índices não só no governo Fernando Henrique Cardoso, mas no próprio período do governo Lula) não se teve notícia de avalanche de acordos coletivos para reduzir salários nem de medidas legais semelhantes ao Programa de Proteção ao Emprego (PPE).
Difícil, portanto, entender as razões determinantes de medida dessa ordem, especialmente se percebermos que empresas brasileiras já tiveram nos últimos três anos benefícios com desoneração da folha de pagamento da ordem de 30 bilhões de reais, que fazem falta nos caixas da Previdência.
Mas voltando à novidade incorporada no projeto de lei de conversão, especificamente a ideia da prevalência do negociado sobre o legislado, a proposta não pode ser admitida sob nenhuma justificativa e sua inconstitucionalidade é flagrante.
PublicidadeA primeira inconstitucionalidade está na própria introdução ilegítima de um novo tema na discussão parlamentar, fugindo do debate inicial.
Note-se, como dito, que o objetivo da medida provisória, na realidade, é instituir um apoio financeiro, via Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), para compensar perdas salariais dos trabalhadores que tiverem jornada e salário reduzido por acordo coletivo.
Na tramitação da Medida, entretanto, surge uma emenda alterando o artigo 611 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), de modo a admitir, de forma ampla, com as únicas ressalvas que pontua, a prevalência do negociado sobre o legislado.
Ora, o Regimento Comum do Congresso Nacional, no parágrafo 1º do seu artigo 4º, estabelece: “Parágrafo 1º – É vedada a apresentação de emendas que versem sobre matéria estranha àquela tratada na Medida Provisória, cabendo ao Presidente da comissão o seu indeferimento liminar”.
Não é diferente o que assinala o artigo 125 do Regimento da Câmara dos Deputados, ao assentar: “O Presidente da Câmara ou de Comissão tem a faculdade de recusar emenda formulada de modo inconveniente, ou que verse sobre assunto estranho ao projeto em discussão ou contrarie prescrição regimental. No caso de reclamação ou recurso, será consultado o respectivo Plenário, sem discussão nem encaminhamento de votação, a qual se fará pelo processo simbólico”.
E nesse ponto o Supremo Tribunal Federal (STF) assinalou: “Ementa; ação direta de inconstitucionalidade. Artigo 3º da lei nº 15.215/2010 do Estado de Santa Catarina. Concessão de gratificação a servidores públicos estaduais. Dispositivo incluído por emenda parlamentar em projeto de conversão de medida provisória. Matéria de iniciativa privativa do chefe do Poder Executivo. (…) 1. Segundo a jurisprudência reiterada desta Suprema Corte, embora o poder de apresentar emendas alcance matérias de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo, são inconstitucionais as alterações assim efetuadas quando resultem em aumento de despesa, ante a expressa vedação contida no artigo 63, I, da Constituição da República, bem como quando desprovidas de pertinência material com o objeto original da iniciativa normativa submetida a cláusula de reserva. Precedentes. 2. Inconstitucionalidade formal do artigo 3º da Lei nº 15.215/2010 do Estado de Santa Catarina, por vício de iniciativa. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente. (ADI 4433, Relator(a): ministra Rosa Weber, tribunal pleno, julgado em 18/06/2015, processo eletrônico DJE-198, divulgação, 01-10-2015, publicado em 02-10-2015).
No caso, buscou-se alterar o projeto da medida provisória que, como se sabe, é da iniciativa restrita da Presidência da República, violando-se o objeto material da inciativa submetida à cláusula de reserva.
Mas esse está longe de ser o maior embaraço. Como já foi dito aqui, a Constituição Federal admite reduzir salários e/ou a jornada. Mas não se trata, evidentemente, de uma regra a ser banalizada. Ao contrário, os dispositivos do artigo 7º (VI e XIII) impõe aos sindicatos negociantes, como pressuposto de validade da contratação coletiva a esse respeito, o reconhecimento de uma crise de âmbito nacional ou na estrutura da empresa que admita a pactuação temporária e limitadamente regressiva de salários, entendida como algo extraordinário.
Em decorrência, entende-se que essa não é uma lógica a ser expandida, invertida e tornada habitual. De modo algum! Razões simples e de adequada leitura constitucional orientam esse entendimento, bastando para tanto perceber-se, por exemplo, que o artigo 7º (caput) da Constituição Federal, ao contrario do que se possa imaginar, não estabeleceu limite máximo de direitos para os trabalhadores, mas sim um piso, ou seja, um limite mínimo, atribuindo aos sindicatos, a quem se quis conferir maiores garantias e estrutura no artigo 8º da Constituição Federal, a busca constante do aperfeiçoamento das garantias sociais.
É tanto assim que a norma do artigo 7º, inciso 26º, da Carta Magna, que proclama o “reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho”, não pode ser lida assim, de forma isolada e descontextualizada, como se coubesse nesse “reconhecimento” qualquer atrocidade cometida contra os trabalhadores. Jamais.
Tal reconhecimento deve estar em harmonia com o já reportado sentido de contínua progressão das garantias sociais (artigo 7º, caput) e articulado com o parágrafo 2º do artigo 114 da Constituição Federal, que proclama o respeito às garantias “mínimas legais de proteção ao trabalho”, bem como “as convencionadas anteriormente”, mais uma vez assentando o sentido de progressão e de um olhar para o futuro em uma perspectiva de construir sempre o mais e o melhor.
Uma lei que autorize negociação contra vantagem legal mínima é altamente preocupante. Nesse sentido, por exemplo, apenas para lembrar alguns aspectos ruinosos que podem ser agravados por normas coletivas mal convencionadas, temos a própria duração de contrato de trabalho (os contratos de experiência que poderiam ter prazo estendidos por acordos ou convenção coletiva), podendo ser disciplinados de uma forma diferente e prejudicial, o mesmo ocorrendo com a regulação legal dos descontos por danos causados pelo empregado, ainda que involuntários.
Mais que isso. Fracionamento de 13º salário, que poderia ser completamente fatiado, como outros direitos e conquistas, sem esquecer o prazo legal para a rescisão do contrato, que simplesmente poderia ser remarcado sabe-se lá de que modo, ou mesmo o pagamento de horas extras e seus reflexos e seguir a mesma linha. Por todas essas razões, é importante reafirmar que medida dessa ordem, induvidosamente inconstitucional, representa uma grave lesão à ordem jurídica e à história de conquista sociais consolidada no processo constituinte de 1988, de modo que sobrepor o negociado sobre o legislado significa a possibilidade indevida de ruptura com a dignidade do trabalho em um ambiente em que deve prevalecer a cultura da consolidação dos direitos fundamentais.
Que o Parlamento e a sociedade tenham consciência desse grave momento e rejeitem o acréscimo indevido na MP 680.
* Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra).
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