“Em futebol, o pior cego é o que só vê a bola. A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana. Às vezes, num corner mal ou bem batido, há um toque evidentíssimo do sobrenatural.” (Nelson Rodrigues)
É célebre expressão pela qual Nelson Rodrigues (1912-1980), o escritor, teatrólogo, jornalista, cronista e “torcedor honorário” do Fluminense Football Club (alguém aí tem algo contra estrangeirismos – objeção com eufemismo para xenofobia?) começava algumas de suas frases desconcertantes: “Os idiotas objetividade…”.
E aqui, acatando sugestão de atento colega, devoto do autor de Vestido de noiva e O casamento, peço permissão ao mestre para fazer um exercício imaginativo de linguagem e dar continuidade à expressão supracitada. Perdoem-me os fãs do escritor (e que ele mesmo o faça…), mas ouso perscrutar o que diria o tricolor-mor depois da final da Taça Libertadores da América, quarta-feira passada, no Maracanã:
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“Os idiotas da objetividade podem pensar que meu Fluminense perdeu o que seria o primeiro título de Libertadores da sua gloriosa história. Ledo engano…” (o também tricolor honorário Carlos Heitor Cony aperfeiçoaria o sintagma, em homenagem ao amigo e “imortal” Ledo Ivo, autor de Ninho de cobras: “Ledo e Ivo engano”… Mas deixemos o discurso lúdico de Cony de lado e vamos ao discurso sagaz de Nelson Rodrigues)
Eis o que poderia ter apontado o escritor, para em seguida lançar seu discurso ácido sobre as pessoas, fatos e fenômenos responsáveis pelo resultado – 3 x 1 para o Flu, sendo que a Liga Desportiva Universitária (LDU), campeã do certame com (nem tantos) méritos, havia ganhado o primeiro jogo, uma semana antes, por 4 x 2 em casa, no Equador. Saldo de gols empatado em cinco para cada time, deu-se o imponderável da decisão por pênaltis: 3 x 1 para a Liga.
Aliás, parafraseando o alagoano Ledo Ivo, ninho de cobras é termo adequado para alguns “operadores” do futebol e congêneres (e incluam-se muitos árbitros nessa lista, muitos). Mas tratemos disso adiante e vamos a apenas dois fatos que justificariam a não aceitação de Nelson Rodrigues quanto à derrocada tricolor. Esclareço, de antemão, que ouso tentar imaginar – missão impossível – o que ele, tricolor apaixonado como eu, teria visto no jogo final. Ou melhor, nas entrelinhas do jogo.
Primeiro: por que mudaram a regra segundo a qual, por toda a competição, o critério de desempate em caso de igual saldo de gols seria o gol na casa do adversário, levando-se em conta a torcida, o ambiente conhecido e favorável etc? Para a final, lépida e inexplicavelmente essa justa norma deixou de existir.
Tanto Fluminense quanto LDU – ou Liga dos Urubus, como queiram os comedores de carniça – já sabiam da alteração. Tudo bem, igualdade de condições. Mas o Flu fez dois gols lá em Quito, capital equatoriana (com altitude de 2.850 metros e tudo), no último dia 25. A LDU fez apenas um no Maraca. Se tivessem respeitado a regra, ao invés de mudá-la durante o jogo, o campeão teria sido o Flu. Campeão oficial, leia-se, porque o tricolor é o campeão de fato para o etéreo criador de Álbum de família.
Segundo: para fazermos uma analogia que bem cabe aqui, o mundo da política é permeado de interesses, em que os do povo é que deveriam prevalecer. A política no futebol é igualmente eivada de interesses. Mas aqui não é o povo o principal e teórico beneficiário, mas o próprio futebol, concebido como o mais popular esporte, certo? Errado.
Sob o conceito de “ciência do poder” para política, eis que surge a pergunta: com o poder de ditar os rumos da fatídica final da Libertadores da América, qual teria sido o interesse do trio de árbitros ARGENTINO (!!!), em especial o juiz principal Hector Baldassi, ao garfar mais um time brasileiro na competição? Na Libertadores do ano passado, o Flamengo sucumbiu diante do uruguaio Defensor graças a quê? À arbitragem do senhor Baldassi (e olha que quem reconhece isso aqui é um tricolor…). E o Santos, em maio deste ano, foi igualmente surrupiado contra o América do México. Por quem? Por ele mesmo…
Detalhes: vários jogadores da LDU são argentinos, e as conversinhas ao pé do ouvido do senhor Baldassi com muitos deles antes de o jogo começar foi quase que um acordo entre amigos. Tudo bem, teve o gol legítimo da LDU invalidado, mas e o pênalti “anulado” pelo goleiro equatoriano Cevallos, saindo da posição antes da cobrança já autorizada ao meia Thiago Neves?
E os dois pênaltis claros não marcados a favor do Fluminense? Sem falar nos eternos segundos antes das várias reposições de bola por Cevallos (a velha e covarde cera), diante do olhar complacente do juiz, sem um cartãozinho sequer… Sem falar naquele golpe-de-sei-lá-o-quê do zagueiro em cima do mesmo Thiago, sem ao menos a marcação de falta, quando esta merecia no mínimo o cartão amarelo…
Aliás, quem foi o asno que convocou juízes argentinos para apitar uma final internacional com um time brasileiro?
Enfim, águas passadas… Peço venia ao “Profeta Tricolor” para aplicar mais uma de suas loas à fatídica partida no Maracanã, o mais triste “Maracanaço” depois daquele Uruguai 2 x Brasil 1, na Copa do Mundo de 1950: “Nossa humildade pára por aqui. Passamos toda a jornada com um passarinho em cada ombro, e as duras e feias sandálias nos pés. Mas o Fluminense é o campeão! Erguendo-me das cinzas da humildade anuncio: vamos tratar do bi”. (ouça trecho da crônica Sandálias da humildade) Sim, meu caro dramaturgo, vamos ao bicampeonato na Libertadores do ano que vem.
Ah! Quase ia me esquecendo… Aos idiotas da objetividade que dizem ser um absurdo, e até uma vergonha (?!), uma pessoa ter nascido em um estado e torcer para time de outro estado, recorro a Nelson Rodrigues e digo que eles continuam condenados a repetir – pobres seres limitados… – seu “ledo engano”. O amor a uma escuderia é (quase) como o amor à mulher – e aqui peço novamente licença ao mestre para explorar essa seara: transcende a limites geográficos.
Ou você aí, torcedor-do-time-do-seu-estado, duvida de que, caso seja mineiro ou carioca, um belo dia venha a se apaixonar por uma bela tocantinense? Aliás, tem time por lá?
Post scriptum: só mais um lembrete. Eu e Nelson Rodrigues tivemos a sorte de nascer em Recife. E ambos temos a sorte igualmente celebrável de torcer (fervorosamente, o que difere da doença que verificamos em alguns) pelo glorioso Tricolor das Laranjeiras. Ele de lá, ao lado do Sobrenatural de Almeida, criador e criatura em sintonia. Eu de cá, ladeado por minhas camisas verde-branco-e-grená. E obrigado, Sobrenatural: aquela cabeçada do Coração Valente Washington lá “onde mora a coruja”, no Fluminense 3 x São Paulo 1 que nos levou às semi-finais contra o argentino Boca Júnior, a centésimos de segundo do último suspiro dos acréscimos do segundo tempo, foi sobrenatural. De Almeida.
Artigo publicado em 06/07/2008. Última atualização em 12/08/2008.
*Fábio Góis é repórter do site Congresso em Foco quando não assume, nas horas vagas, seu texto literário e a torcida fanática pelo Fluminense.
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