Que o texto inaugural desta coluna se assemelhe a uma carta de princípios. A tarefa à qual nós vamos nos debruçar aqui, daqui para a frente, será desvendar o que está por trás dos principais movimentos e fatos políticos, e das ações e estratégias que os tornaram possíveis. E a experiência da história brasileira vai nos jogar na cara o seguinte: será inevitável que, nesse exercício, nós fiquemos quase sempre com a estranha sensação de que o picolé derreteu e que ficamos chupando apenas o palito. Ou seja: de que alguma coisa sempre acontece no final que frustra as nossas melhores expectativas.
Se há um episódio subestimado da história do Brasil, é a Batalha de Itararé. A “batalha que não houve” só mereceu a atenção daquele que talvez tenha sido o nosso maior humorista, Aparício Torelly, que adotou a designação de Barão de Itararé, entendendo o quanto aquilo representava na nossa sina brasileira.
Voltemos a 1929. A República Velha adotava a “política do café com leite”, uma divisão do poder entre São Paulo e Minas Gerais, naquele momento fortemente contestada. Para suceder o presidente Washington Luís, lançou-se o nome de Júlio Prestes. As eleições aconteceram num clima agitado, com suspeitas de fraude. A confusão aumentou quando João Pessoa foi assassinado na Paraíba. Em paralelo, os preços do café caíam, como reflexo do crack da Bolsa de Nova York, enfraquecendo o braço econômico do grupo no poder. Rio Grande do Sul, Paraíba e Minas Gerais iniciam um levante. Do Rio Grande do Sul, os revoltosos marchariam rumo ao Rio de Janeiro. De acordo com o governo, eles não passariam de Itararé. Ali, as tropas governistas estavam preparadas para resistir. A população, aflita, esperava grande derramamento de sangue e esvaziou a cidade. Quando a batalha estava prestes a acontecer, chegou a noticia de que Washington Luís, no Rio, já havia sido deposto. E a batalha, ao final, “não houve”.
Assim, frustrou-se a expectativa da batalha sangrenta. Ainda que a Revolução de 1930 seja o nosso maior momento de inflexão, ainda que a era Vargas tenha marcado as nossas principais mudanças, transformando o Brasil de um país agrícola numa nação industrial, a “batalha que não houve” fica como marca dessa nossa característica. Aqui, ficamos quase sempre no quase: diante do mal inevitável, as forças políticas se recompõem, fazem um novo acerto, e o país segue em frente, da forma que for mais favorável – ou, pelo menos, menos desfavorável – para todo mundo. Não é que as mudanças não aconteçam, mas elas acontecem sempre de uma forma acordada, conciliada. Não violenta – pode ser o lado bom -, mas atenuada sempre – e esse é o lado mau.
A Batalha de Itararé poderia ser, assim, a nossa “data nacional”. E podíamos importar da Itália um herói, “O Leopardo”, do romance clássico de Lampedusa. Vamos ao romance. No final do século XIX, a Itália unifica-se. Os antigos principados vão se tornar um país. “O Leopardo” é um dos velhos nobres da época pré-unificação. Ele tem um sobrinho, de nome Tancredi (não é piada, o nome do personagem é Tancredi mesmo), que se engaja às tropas de Giuseppe Garibaldi, em favor da unificação. “O Leopardo” resolve, então, casar Tancredi com a filha de um burguês que ascende socialmente após a unificação (não, o sobrenome da moça não era Sarney). Ou seja: literalmente, a aliança entre o velho e o novo. Consubstanciada numa frase do “Leopardo” para explicar a união que patrocina: “È preciso que algo mude para que tudo fique como está”.
De volta, então, ao Brasil. A Independência foi proclamada pelo filho do rei português, “antes que um aventureiro” lançasse mão. A República foi proclamada por um general monarquista. O golpe de 1964 foi uma reação conservadora para evitar mudanças. A retomada da democracia se deu numa eleição em que o candidato a vice era o presidente do partido que até então defendia a ditadura militar. Quem quiser seguir, vai encontrar ainda a aliança entre o velho e o novo em cada gabinete de cada andar de cada prédio da Esplanada dos Ministérios. Lula preferiu uma alegoria bíblica para explicar isso, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
E assim seguimos. Algo mudando para que tudo fique como está. Eis, então, a carta de princípios desta coluna: nossa tarefa será sempre procurar identificar as “Batalhas de Itararé” e os “Leopardos” das nossas vidas. Vamos a eles.
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