Olha aí, é o meu guri’’
(Chico Buarque)
O povo bradou na rua por justiça, e mais de uma mãe chorou…
Mas há várias formas de matar uma criança. Formas silenciosas e lentas, maneiras diversas de se extirpar toda a inocência, a espontaneidade e a doçura desse ser delicado e frágil.
Freqüentemente elas são mortas ainda no berço, por asfixia afetiva. Outras, um pouco todos os dias, quando vêem na soleira da porta de casa um cadáver crivado de balas, expostas à violência das ruas e dos bêbados e ao assédio dos traficantes – geralmente seus heróis prediletos. Morrem quando, para colocar comida na mesa, suas mães têm de sair para trabalhar, deixando-as à própria sorte dia após dia. A ausência de um pai ou a presença de padrasto bêbado, que não raras vezes lhes arranca a infância por meio do abuso sexual, também é responsável por sua morte. Cenas da mãe violentada ou agredida bem diante de seus olhinhos já não tão infantis pouco a pouco vão matando sua infância. Muitas vezes também o uso do álcool, das drogas e do cigarro lhes tira a inocência.
É por essas e outras que temos nos acostumado a ver, nos sinais dos grandes centros urbanos, adultos de cinco anos de idade. Crianças mortas na calada dos dias que passam por nós sem fazer parte de nossas vidas. Essas mortes não contam, elas são silenciosas e não incomodam o sacrossanto cinema de domingo. Acostumamo-nos a elas. Para nos comover, a morte precisa ser sangrenta, violenta, precisa fazer barulho. Tem de provocar clamor social. A morte silenciosa e lenta das crianças abandonadas, destruídas pela miséria, pela ignorância, pelas drogas legais e ilegais não provoca clamor social, não nos indigna. Passamos por ela todos os dias com indiferença. Talvez não percebamos porque, embora aconteça em nossa cidade, não ocorre em nosso bairro ou em nossa rua. É mais fácil notar a morte apoteótica de uma de nossas crianças. As outras não sentem dor, as outras são bichinhos remelentos no semáforo, nas ruas, nas praças. Só as notamos quando arrastam um dos nossos por sete quilômetros, e, nesse instante, as chamamos de monstros.
Ainda assim, preferimos clamar por penas mais duras a olhar para nossa omissão cotidiana. Preferimos atitudes de forte efeito midiático, que mascaram o caos em que nossa sociedade se encontra e que nos deixam com a sensação de que fizemos nossa parte.
Sejamos honestos. Com o sistema prisional que temos, será que alterar o Código Penal, aumentar o período de prisão e diminuir a maioridade penal são soluções? Digo-lhes que provavelmente não. Na Alemanha, embora exista pena de prisão perpétua, um apenado não pode permanecer encarcerado além de quinze anos – metade do prazo máximo previsto no Código brasileiro – e a violência urbana naquele país não alcança os índices que o Brasil atinge. Então, pergunto: é uma questão de penas mais longas?
Queremos combater a violência ou afastá-la do campo de visão? É isso que fazemos com os filhos rebeldes que temos? Banimos do convívio social para que os vizinhos não os vejam? Para que não tenhamos de encarar nossa incapacidade de lidar com eles? É mais cômodo colocar os filhos rebeldes da pátria-mãe gentil encarcerados, excluídos do convívio social, amontoados em presídios fétidos, longe do olhar dos cidadãos de bem. Assim, afastamos o incômodo que nos causa a omissão cotidiana de todos nós. É necessário cuidado, nossa omissão tem matado crianças todos os dias. Ao afastá-las do convívio social saudável, matamos o resto de humanidade que ainda lhes resta, novamente de forma lenta e cruel.
Quando já não for mais possível arcar com os custos de manutenção dos apenados nos presídios, as bandeiras da pena de morte mais uma vez serão levantadas. E nós, cidadãos de bem, compactuaremos, então, com o assassínio daqueles que não se “enquadraram”, daqueles que não se adaptaram às regras. Destruindo em nós o resto de humanidade que nos resta.
Senhores, não há que se fazer reforma na legislação penal, há que se repensar o sistema de justiça penal no país, reconstruir. Mais que isso, urge diminuir as desigualdades sociais, força motriz da violência. É chegada a hora de pararmos de anestesiar a dor de perdas pontuais cuidando de sintomas e encararmos as causas dos males que nos afligem. Certamente será mais doloroso e lento, mas trará resultados duradouros. Quem sabe assim, nossos netos possam brincar nas ruas e nas praças sem risco de morte.
(Paulo Leminsky)
*Maria Cláudia Cabral é advogada, especialista em direito público e cooperação jurídica internacional. E-mail: mariaclaudiacabral@uol.com.br.