A sigla, Fundeb, é bem mais conhecida que o comprido e redundante nome de batismo: Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação Básica. A iniciativa promete trazer mudanças importantes. Entre outras medidas, aumenta os recursos destinados à educação básica, amplia os níveis de ensino contemplados por financiamento público e cria um piso salarial nacional para os professores.
Mas uma certeza e uma dúvida rondam hoje a tramitação da proposta, que beneficiará mais de 48 milhões de alunos. A certeza é que a oposição não pretende criar dificuldades à sua aprovação ainda neste ano. A dúvida é se haverá tempo suficiente para, nas poucas semanas que restam de atividade legislativa ao Congresso, votar a matéria na Câmara em dois turnos e depois aprová-la – também em dois turnos de votação – no Senado.
Agrava a situação o fato de a pauta da Câmara continuar bloqueada por medidas provisórias, que devem ser votadas antes de a proposta de emenda constitucional (PEC) do Fundeb ir a plenário. Por tudo isso, aprová-la ainda neste ano seria uma verdadeira façanha. Não fazer isso, por outro lado, significará colocar em risco o financiamento do ensino público no país, já que as regras atuais são estabelecidas pelo antecessor do Fundeb, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental (Fundef), cuja vigência termina agora em 2006.
Mudança para preservar o FAT
Bastaria a Câmara aprovar o texto tal como ele foi aprovado pelos senadores, em julho deste ano, para eliminar a necessidade de nova votação no Senado. O governo não aceita, no entanto, a emenda incorporada à proposta pelo senador Tasso Jereissati (PSDB-CE). Ela incluiu os recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) entre as receitas do Fundeb.
O mais notório opositor da mudança é o ministro do Trabalho, Luiz Marinho. O FAT, mantido com o dinheiro do Programa de Integração Social (PIS) e do Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep), financia o seguro-desemprego, os abonos do PIS-Pasep e os investimentos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
Os argumentos de Marinho são semelhantes aos apresentados em uma nota técnica da Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara. O parecer, elaborado pelo consultor Leonardo Rolim a pedido do deputado Sérgio Miranda (PDT-MG), concluiu que, embora o FAT seja hoje superavitário, seria "preocupante a destinação de novas responsabilidades para seus recursos". Afinal, 96% do orçamento do FAT já é consumido pelo seguro-desemprego e pelo abono salarial. O documento destaca que os riscos não justificam o possível ganho que a alteração traria: a elevação em menos de 10% da participação federal no Fundeb.
Na Câmara, a comissão especial encarregada de analisar a matéria, por unanimidade, rejeitou na semana passada a mudança feita pelo Senado. Inicialmente favorável à injeção dos recursos do FAT no Fundeb, a relatora, deputada Iara Bernardi (PT-SP), optou por descartá-la depois de ouvir os apelos nesse sentido do ministro Luiz Marinho. "Não quero criar nenhum empecilho para a aprovação da PEC", disse a relatora ao Congresso em Foco.
O clima é o mesmo na oposição. Também simpático à alteração incluída na PEC por Jereissati, o líder do PFL na Câmara, deputado Rodrigo Maia (RJ), considera insensato pôr em risco a aprovação do Fundeb por causa disso. "Estou convencido de que é preciso ter prioridade sobre a educação infantil", afirma ele, "mas agora é tarde. É responsabilidade de todos votar o Fundeb agora porque o Fundef termina no final do ano".
O que é o Fundeb
O Fundeb está em discussão desde 1997. Mas o debate do tema só começou para valer no Congresso em 2005, quando lá chegou a proposta feita pelo atual governo. Antes disso, o Ministério da Educação (MEC) teve de vencer as resistências do Ministério da Fazenda.
O ex-ministro Antonio Palocci dificultou até o último momento a liberação de recursos do Tesouro Nacional para creches (destinadas a crianças de até três anos). Também era contra o piso nacional dos professores, que não constava da proposição original do Executivo. Acolhido pelos parlamentares, o piso – cujo valor será fixado por lei – foi muito comemorado pelos profissionais da área educacional e pelo próprio MEC.
Palocci estava de olho no custo que o Tesouro poderia ter. Como ocorre hoje com o Fundef, o Fundeb estabelece um valor mínimo anual a ser gasto pelo setor público com cada aluno. Se o estado ou município não tem recursos para atingir esse patamar, a diferença é coberta pelo fundo.
A diferença é que o Fundeb é bem mais amplo. Ele também contempla a educação infantil (para alunos de até seis anos) e o ensino médio, enquanto o Fundef se restringiu ao ensino fundamental (antigo 1º grau). E envolve somas bem mais elevadas.
O Fundef é financiado por 15% da arrecadação de vários tributos estaduais e federais e das transferências obrigatórias da União aos estados e municípios. O Fundeb aumenta esse percentual para 20% e inclui três novos tributos: um federal, o Imposto Territorial Rural; e dois estaduais, o Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) e o Imposto sobre Transmissão de Causa Mortis (ITCM).
Estados e municípios continuarão entrando com a maior parte dos recursos do fundo. Mas, com o Fundeb, a participação federal no financiamento da educação básica crescerá significativamente. Em 2006, os repasses do Tesouro Nacional ao Fundef ficarão abaixo de R$ 400 milhões. Aprovado o Fundeb, a União repassará R$ 2 bilhões no primeiro ano; R$ 3 bilhões no segundo; R$ 4,5 bilhões no terceiro; e 10% do orçamento total do fundo a partir do quarto ano.
O MEC estima que o Fundeb terá um orçamento superior a R$ 50 bilhões já no seu terceiro ano de existência. O fundo, que terá a duração de 14 anos, servirá principalmente para melhorar os salários e a formação dos professores e demais profissionais da área educacional.
O que pode acontecer
Há pelo menos três cenários possíveis em relação ao futuro do Fundeb. No melhor deles, o Congresso conseguiria encerrar a aprovação do fundo neste ano, com os votos favoráveis de pelo menos três quintos dos parlamentares (308 deputados e 49 senadores, quorum mínimo para aprovação de PECs). No pior, o Fundef sairia de cena sem que qualquer outra coisa o substitua, levando ao colapso o sistema de financiamento do ensino básico.
Uma saída intermediária já começa a ser aventada: o recurso à medida provisória (MP). Quem primeiro mencionou essa possibilidade foi o presidente Lula, durante visita ao Piauí, em março deste ano. Mas aí também haveria obstáculos a transpor. O primeiro, de ordem jurídica: como usar uma MP para tratar de um tema eminentemente constitucional? O segundo é político. As lideranças do Congresso devotam profunda antipatia pelas MPs por entenderem que elas são usadas de forma abusiva pelo Executivo. E uma eventual MP do Fundeb poderia levar o novo Congresso a fazer o assunto retornar à estaca zero, revendo pontos que já são hoje objeto de consenso entre oposição e governo.
Ao MEC não agrada a alternativa de legislar a respeito da questão por medida provisória. "Não trabalhamos com essa hipótese porque o Fundeb foi feito de forma coletiva com a sociedade e as entidades do setor", disse ao Congresso em Foco o secretário de Educação Básica do ministério, Francisco das Chagas Fernandes, apostando numa solução de consenso.
Ainda que a PEC seja aprovada nas duas Casas este ano, há outro problema a resolver. Sensível ao lobby dos governadores, o Senado estabeleceu limites para os estados injetarem no Fundeb recursos a serem utilizados pelos municípios. Foi essa a segunda alteração feita pela comissão especial da Câmara no texto devolvido pelos senadores. O dispositivo foi suprimido.
Prevaleceu o entendimento de que o assunto deve ser definido na regulamentação do fundo. A questão é polêmica. Os governadores alegam que precisam de garantia de recursos para aumentar os investimentos em ensino médio, responsabilidade que cabe prioritariamente aos estados. Os prefeitos argumentam que problema mais sério será o financiamento das creches, que atualmente abrigam somente 13,4% das crianças de até três anos (no caso dos jovens de 15 a 17 anos, que deveriam estar cursando o ensino médio, 18,1% estão fora da escola).
"Haverá transferência de recursos dos municípios para os estados", protesta Paulo Ziulkoski, presidente da Confederação Nacional dos Municípios (CNM). De acordo com simulações feitas pela entidade, as perdas poderiam chegar a R$ 4 bilhões por ano. Em favor de sua pregação, a CNM também cita estudo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul segundo o qual o custo por aluno em uma creche é em média 94% maior que no ensino médio. "Tem prefeito com medo de ser preso a mando do Ministério Público, depois do Fundeb, pois não sabe de onde virá o dinheiro para as creches", completa Ziulkoski.
Francisco das Chagas Fernandes minimiza as declarações do líder municipalista. "É verdade que os custos nas creches são maiores que no ensino médio, mas não existe a obrigatoriedade de universalização nesse nível de ensino nem os pais são obrigados a matricular seus filhos em creches. Além disso, os municípios têm seus impostos, como o IPTU, para investirem em educação, já que eles não serão transferidos para o Fundeb", argumenta o secretário de Educação Básica do MEC.
Tema de campanha
Na campanha presidencial, nenhum candidato fez restrições ao Fundeb e a maioria deles enfatizou a necessidade de sua aprovação. O tucano Geraldo Alckmin chegou a provocar: "O governo tem maioria para absolver mensaleiro, mas não tem para aprovar o Fundeb".
De fato, o governo Lula se empenhou menos do que seria de se esperar pela aprovação do Fundeb. Mas a oposição também tem sua parcela de responsabilidade no atraso da discussão da proposta. Ele decorreu, a princípio, da paralisia causada pela crise do mensalão e, depois, da lentidão que o período pré-eleitoral impôs à produção legislativa no Congresso.
Para a líder do PT no Senado, Ideli Salvatti (SC), o impasse atual se deve a uma manobra oposicionista. Na opinião dela, a vinculação de recursos do FAT ao Fundeb "foi um submarino que a oposição tentou colocar na última hora, mas sem nenhuma previsão de gastos". À época, Ideli apresentou destaque para suprimir a sugestão de Jereissati, mas ele foi rejeitado. Setores do governo, no entanto, aplaudiram a mudança feita pelo Senado. "Na minha opinião, quanto mais recursos para educação melhor, mas não houve consenso dentro do governo sobre essa questão", admite Francisco das Chagas Fernandes.
O fato é que, no momento, tanto governo quanto oposição tem razões de sobra para tirar o Fundeb do papel. Os oposicionistas não querem ser responsabilizados pela inviabilização de uma mudança legal que possibilita atender à principal demanda da área educacional: bem ou mal, ela aumenta os reais destinados ao setor. E o governo tem no novo fundo a possibilidade de melhorar um desempenho que até aqui ficou muito abaixo das expectativas no campo da educação básica.
Durante o governo Lula, o percentual de alunos de 15 a 17 anos fora da escola aumentou pela primeira vez desde 1993. Naquele ano, esse índice era de 38,1%. Na era FHC, caiu muito, chegando a 17,6% em 2003. Em 2005, voltou a ultrapassar 18%.
O retrocesso reforça uma crítica feita por vários especialistas à gestão petista na educação: a falta de prioridade para o ensino básico, que, no entender de muitos, foi preterido nos últimos anos em favor da educação superior. A implantação do Fundeb não encerrará esse debate. Afinal, o fundo aumentará as receitas para o ensino básico, mas não saciará as necessidades de um setor com carências crônicas.
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