1.Plataforma 36
2. Crianças de até cinco anos comem cheetos na área de embarque
3. Zoeira, furdunço,barafunda.
4. Pais adolescentes
5. Avó-urubu. Também jovem, porém visivelmente evangélica e arruinada.
6. Dedos engordurados de cheetos das crianças de até cinco anos.
7. Unhas micosadas da avó-urubu.
8. Nomes que desafiam a lei da gravidade:
9. Maicon puxa o cabelo de Katiene
10. Katiene abre o berreiro.
11. Dafne tatuada no antebraço de Uélinton.
12. Uélinton recrimina Maicon
13. Maicon e Katiene choram.
14. Malas e mochilas cor-de-rosa da mesma cor do esmalte que tenta cobrir a unha micosada da avó-urubu-evangélica. Eu me aproximo.
15. Conteúdo ameaçador das malas e mochilas
16. Véspera de feriado.
17. Babelão é a soma de zoeira, furdunço, barafunda, mais a quizumba tão ameaçadora quanto o conteúdo (cheetos) das mochilas-cor-rosa. O termo “Babelão” foi cunhado por Furio Lonza, registre-se.
18. Descarto os Bálcãs por despeito fonético, como se fosse o responsável pelo setor de admissão dos novos sócios do Clube Harmonia.
19. E penso: “Jamais acontecerá um genocídio limpinho na Vila Joaniza”. Mas não trabalho no setor de degola do Clube Harmonia. Nem sou o Mengele da Oscar Freire.
20. Sou muito mais Odara que isso.
21. Dafne torce o braço de Maicon, e ameaça: “não pertuba! não pertuba!”
22. Uélinton não é menos podre do que eu – embora seja um pouco mais adaptado e bem mais novo, tem idade para ser meu filho.
23. Se fosse …meu filho, o castraria e trancaria numa jaula.
24. Não vejo futuro para Maicon nem para Katiene. Apenas celulares cor-de-rosa, eletrodomésticos, desqualificação profissional, cheetos e dívidas no cartão da Renner.
25. Bermudões, tênis de três andares, mochilas cor-de-rosa. Penso: “Crianças tem um alto potencial pro mau gosto”. Em seguida, faço uns cálculos:
26. Consumo = cidadania
27. Cidadania = consumo.
28. Lula é um gênio. Um estadista que é transmitido pelos telões da rodoviária. Ele vocifera e pragueja. Mas não ouvimos o que diz, portanto Lula apenas se espalha – feito um câncer.
29. Um estadista sem uma única frase. Divago:
30. Getúlio saiu da vida e deu um jeito de virar história – embora haja controvérsias com relação à autenticidade da carta-testamento. Dizem que o autor é Augusto Frederico-Schimidt.
31. Traído pelas divagações, estabeleço contato visual.
Tarde demais.
32. Getúlio arrumou uma frase para si e entrou para a história, e eu entrei pelo cano.
33. Dafne e a sogra apavoram-se ao se defrontar comigo. Maicon tem convulsões brutais debaixo da burca encardida da avó-urubu.
34. O ônibus das 16 horas encosta na plataforma 36. Uélinton entra na fila do bagageiro. Equilibra uma maçaroca de papelão sobre a cabeça. O embrulho destoa acintosamente das mochilas cor-de-rosa. “Tropical-fanho”, penso.
35. Cheetos esparramados pelo chão.
36. Katiene alcança os salgadinhos, Maicon – ainda sob o efeito das convulsões – vislumbra os despojos de cheetos entornados pelo chão, e avança na direção da irmã. As crianças chafurdam na plataforma 36.
37. Ânsias. Refluxos. Azia. Cheetos.
38. A avó de unha micosada sacode violentamente Katiene, e reprova com veemência o pânico escancarado que deforma meu rosto.
39. Eu recuo, e me apavoro diante da repulsa de Dafne e das imprecações da velha-urubu evangélica que têm as unhas micosadas do pé pintadas de cor-de-rosa … acrílico.
40. Antes de recuar, porém, distribuo um gesto obsceno. Um foda-se amplo, fervoroso, carregado de fungos e perplexidade. Penso que no dia seguinte será 7 de setembro. Dilmão passará as tropas em revista.
41. Uélinton e Maicon têm os cabelos cortados à Neymar. Duas crianças.
42. Dafne alisou e descoloriu a carapinha no salão da Michelly. Num futuro próximo, terá unhas micosadas acrílicas iguais às unhas da sogra. E burcas da Renner.
43. Uélinton mostra os documentos das crianças pro motorista.
44. Noto que há uma cumplicidade maligna entre o motorista e Uélinton.
45. Dafne corre atrás de Katiene. Maicon volta a ter convulsões e espasmos, e agora relincha.
46. Vejo meu perfil refletido na plataforma de embarque. Em poucos minutos me transformarei num queijo quente.
47. A velha de unha micosada cor-de-rosa saca uma Bíblia em meio aos salgadinhos e me amaldiçoa pro resto dos meus dias.
48. O pavor impresso no meu rosto transforma-se em escárnio.
49. O motorista nota que há algo de maligno na minha figura, e pede meus documentos.
50. Era tudo o que eu queria. No RG, ostento um bigodinho grisalho estampado numa cara de bunda. Sou um filhodaputa premeditado.
51. Subimos no ônibus – o que era pavor, medo, desconfiança, ressentimento,animosidade,ultraje, afronta, nojo, carne viva, fratura exposta, ridículo pleno e intolerância;
52. enfim, o que era ódio declarado de ambas as partes …
53. transforma-se em destino –
54. O mesmo e improvável destino:
Brasil, 6 de setembro de 2012. 15h: 50 min. Plataforma 36. Terminal Rodoviário do Tietê.
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