Morava numa casa de madeira, na Praia do Santinho, Ilha de Santa Catarina. Quase incomunicável. Uma felicidade quando ouvia a moto do carteiro que trazia as cartas desenhadas da Aninha Lima (com rodapés em francês que eu não entendia bulhufas), além disso, eu tinha meus livros, um CCE 3 em 1 que às vezes sintonizava a Itapema FM e mais duas ligações a cobrar pra casa da minha mãe – todo mês – pra pedir arrego. Nada de televisão. Nada de jornal. Internet? Mandei meu primeiro email dez anos depois. O que mais?
Ah, claro. Marisete vendia seu amor na Conselheiro Mafra. Foi na Praia do Santinho que terminei Fátima fez os pés para mostrar na choperia, escrevi O herói devolvido e O azul do filho morto. Os três livros batucados na Olivetti Lettera. Deixei esse tesouro datilografado em confiança do Ricardo, uma pena que os originais tenham sumido (inclusive os manuscritos de Bangalô, mas essa é outra história). Eu estava ficando louco. Dostoiévski assombrava as noites de tempestade e as louças de duralex quebravam em cima da pia. Um dia, depois de uma lestada que levou meus pesadelos pra dar uma volta em Santo Antonio de Lisboa, uma gata amarela-rajada apareceu lá em casa, e disse que era a reencarnação de Ana C.
Ela me adotou. Toda manhã deixava uma ratazana estraçalhada na porta de casa. Nunca mais tive problema com os russos. Atribuía os dias ensolarados e as noites de calmaria àquela gata. Ana C. me assoprou longos trechos do Azul do filho morto, foi ela quem revelou que alguns escritores suicidas reencarnavam como gatos.
—- Pra que o mundo se eu tinha uma gata suicida como confidente?
Até que Ana C. – ah, as fêmeas… – resolveu aplicar um xaveco pra cima de mim. Ela trouxe a tiracolo um gato malandro que dizia incorporar Césare Pavese (será apropriado o uso desse termo “incorporar” em se tratando de gatos?). Bem, o gatuno até podia ser a versão felina do autor de O diabo nas colinas, mas eu achei um puta desaforo da parte dela. Só pra sacaneá-los,eu o chamava de Batatinha. Ana C. emputeceu comigo, e eu com ela que me traía com aquele Pavese da Hanna & Barbera. Depois apareceram Sylvia Plath, Hemingway, Kawabata que me convidou pra conhecer as belas adormecidas, Torquatinho que eu pus pra correr e Mishima que me encheu o saco. Quem quiser conferir essas e muitas outras histórias ( tem até o registro do dia que conheci Joãozinho e Nilo num congresso insosso de orgasmos reichianos) basta ler os livros supracitados.
Esqueci de dizer que eu era o feliz proprietário de uma Variant 72 caindo aos pedaços, e um dia dei carona pra Toni e Elvira. Jamais podia imaginar que, quase dez anos depois, Elvira! e outros sete contos do Herói devolvido seriam encenados no Centro Cultural São Paulo. Bortolotto fez a adaptação. Esther Laccava encarnou Elvira (lembro da Fernanda como Elvira também: duas gatas), e Waldimir Trevizanno – no decorrer de uns três ou quatro anos – sempre foi o Toni. Saudades de mim, saudades dos gatos suicidas.
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PublicidadeAqui a versão reescrita da carona. Ou Elvira! turbinada especialmente para o Congresso em Foco. Ah, só para constar e lembrar os caipiras que acham que literatura é Flip-fashion week: Elvira! faz parte do melhor livro de contos publicado no Brasil nos últimos vinte e cinco anos, cujo autor sou eu mesmo e cujo título é O herói devolvido (ed 34, 2000).
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Vale conferir o som do “Elvira!”. A mulher do guitarrista – Elvira! (ela mesmo) – me convidou para conhecer sua casa e os seus “dois filhos maravilhosos”.
O som dos caras tinha grande chance de ser uma bomba.
Eu havia apenas dado uma carona a eles. Em princípio, considerei o convite uma delicadeza e uma demonstração de confiança tocantes da parte do casal. Mas talvez alguma coisa da minha personalidade ao volante – vai lá saber? – sugeriu a mistura de chiclete com ternura, banana com sujeira. O fato é que criei a expectativa de viver o primeiro adultério como se fosse um descuido. Um descuido premeditado da minha parte e da parte deles, que aceitariam carona de qualquer um. Eu tinha um Gurgel. Vou contar até seis.
1. O quartinho nublado pela maresia. Toni entabulava uns acordes consigo mesmo. O bebê de Elvira fissuradíssimo me encarava. Eu e Elvira, o bebê e Toni. Os quatro sobre a cama que ameaçava desabar. O outro “filho maravilhoso” de Elvira, pelo que entendi, havia morrido e se misturava à maresia e à miséria que bordejava sobre nossos cornos.
2. Tesão danado. O lençol manchado de café e gordura. Algodão, saliva e revistas velhas especializadas em bebês. A coisa toda recendia lixo/compaixão. Eu os invejava e repudiei minha vida de homenzinho-bem-cuidado e isento das coisas do chorume, do dinheiro amaldiçoado, do amor e da maconha.
Elvira me garantiu que os vizinhos eram “caretas” e aproveitou para dar uma ralhada comigo. Toni, feito Apache do Beto Carreiro, sugava um toco de fumo microscópico e ria dos pés de Elvira sobre minha coxa. Nunca imaginei que a coisa toda “desses maconheiros cabeludos” fosse tão tesuda. Ou sempre imaginei. É evidente que continuo sendo o mesmo bunda mole de sempre. Disso nunca vou me livrar.
3. Parece que Elvira gostou do meu disfarce. Não obstante o bebê-diabo lançava-me olhares injetados. Chegou uma hora que não deu mais para disfarçar a ereção, e eu pensei em despachar Toni e o bebê de Elvira Rosemary para Woodstock: numa Kombi florida, onírica e insustentável. Mas não tive coragem.
4. Os pés de Elvira eram macios, as unhas redondas e determinadas, porém descuidadas e sujas. Eu não estava nem aí pra sujeira e sentia maciez onde uma camada de cascão roçava aquilo que os místicos chamam de caráter, no caso minha coxa, ou ex-caráter tanto faz. O problema era disfarçar a ereção e tentar entender como é que a situação – aparentemente – eu falo pelo casal (o bebê fissurado fica de fora, por Deus!) -, não guardava nenhuma ligação com o sexo imundo, tesudo e complicado que eu sempre fiz e pelo qual, tirando as matérias do cu, jamais nutriria qualquer expectativa de redenção e/ou vontade de auferir conhecimento e provas. Bem – pensei comigo mesmo: – que as pedras rolling stones precipício abaixo e foda-se (e foi o que fiz, mezzo constrangido, mezzo achando um tesão).
5. Toni abraçou o violão. Antes enrolou novo baseado. Ele sabia fazer as coisas e, apesar de habitar noutro mundo, parecia ter controle da situação: alheio e telepático – o filhodaputa.
O bebê grudou na teta da mãe: “Bateu a larica!”, constatou Elvira.
Em seguida, ela sorriu e apontou o mamilão na minha direção, e perguntou o que eu achava de suas tetas. Eu disse que, apesar da visão um pouco eclipsada pelo bebê laricado, gostava. Aí pensei nas palavras “inchaço” e “intumescência”. Toni dedilhou Leãozinho no violão e eles tiveram um pequeno desentendimento.
Na verdade, eu estava louco pra cair de boca nas tetas intumescidas e latentes de Elvira. Na impossibildade de retirar o bebê do colo da mãe, peguei o baseado e dei “um tapa” violento. Eles se olharam e riram quando eu disse que ia “dar um tapa”. Errei de gíria. O tesão baixou um pouco. Me ocorreu o narrador de Zorba, o grego. Que até metade do livro ainda não havia comido ninguém. Então eu disse pra Elvira: “Sabia que as mulheres de Creta untam seus cabelos com azeite de Loureiro?”. Ela e o marido novamente trocaram olhares. Dessa vez engoliram o riso. E Elvira, me parece que sim, comoveu-se profundamente achando que aquilo de “as mulheres de Creta untarem seus cabelos com azeite de Loureiro”, era, afinal de contas, uma coisa bonita que eu havia falado.
6. A maconha emburrecia Elvira – ostensivamente, eu diria. Toni virou-se para mim, e disse: “Relaxa, cara.”
Meu truque deve ter funcionado.
Elvira tirou os pés das minhas coxas e foi ao banheiro. Eu, Toni e o bebê permanecemos flutuando na maresia. Toni me disse que as coisas estavam feias pro lado deles, a lista era longa: aluguel, agiota, traficantes, vizinhos caretas (pensei na bosta de cavalo ressecada misturada a maconha que eles fumavam ) etc etc até que o puto chegou no sexo de Elvira: “Relaxa, cara”. Ato contínuo, tragou da guimba o que restava de seu fracasso retumbante, e recomendou que eu fosse carinhoso com sua esposa, que lhe chupasse os tornozelos e depois as panturilhas. Cobrou vinte reais. Não pude negar o dinheiro. Não havia fracasso, e nem tampouco literatura que me fizessem pior do que eu já era. Deixei vintão em cima da cama. Dei “um tapa”. E caí fora, antes de Elvira voltar do banheiro.
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