Bruno Hoepers *
Transcorrida a eleição de 2006 nos Estados Unidos os resultados já são conhecidos. Os democratas constituirão maioria na Casa dos Representantes (equivalente à Câmara dos Deputados no Brasil) e maioria no Senado. Contudo, não era esse o cenário que se previa dois meses antes das eleições. Apesar de algumas denúncias de corrupção e da guerra no Iraque, os republicanos apareciam como favoritos para manter a maioria na Câmara, ou, pelo menos, no Senado.
Alguns fatores explicam o pré-favoritismo republicano. Grande parte dos congressistas republicanos concorreram à reeleição, e nos Estados Unidos a taxa de reeleição para a Câmara é muito alta (entre 90 e 95%). O detentor de mandato (incumbent) apresenta vantagens importantes em relação a outros candidatos. É mais conhecido pelo eleitor e possui mais facilidades para arrecadar fundos de campanha.
Mas, junto com a aproximação do pleito, cresceu a insatisfação pública com políticos envolvidos em corrupção, com um Congresso de maioria republicana que se via incapaz de votar projetos importantes como o de imigração e, claro, quanto à guerra no Iraque. O escândalo envolvendo o congressista republicano Mark Foley, referente ao envio de mensagens de conteúdo sexual inapropriado para jovens estagiários na Câmara, e o recrudescimento da violência no Iraque há um mês das eleições ampliaram a descontentamento popular, favorecendo a oposição democrata.
Quanto às eleições para a Câmara, ainda não se tem o resultado final. Há necessidade de recontagem dos votos em distritos eleitorais nos quais os resultados foram muito próximos entre os adversários. Mantendo-se os resultados já apurados, espera-se uma bancada republicana com até 202 deputados e uma bancada democrata com 230 a 235 deputados. As vitórias democratas mais significativas concentraram-se em distritos nos estados de Ohio, Indiana e Pensilvânia. Em Ohio, o partido republicano foi duramente abalado por casos de corrupção envolvendo o atual governador republicano no estado, afetando, conseqüentemente, todo o partido.
Também foram contabilizadas perdas em estados do nordeste (fortemente democratas) e em alguns distritos específicos, como o 22º do Texas, ocupado pelo ex-líder republicano Tom Delay, que renunciou em razão de denúncias que o ligariam à obtenção de fundos ilegais com o lobista Jack Abramoff. Muitos republicanos perderam a reeleição para candidatos democratas mais conservadores. E curiosamente a futura Presidente da Câmara (speaker of the House), Nancy Pelosi, é considerada ultraliberal, em contraposição aos seus novos colegas na Câmara.
No Senado, os democratas conquistaram maioria apertada, 51 cadeiras contra 49 dos republicanos. Já se esperava a reeleição da maioria dos candidatos a senador, tanto republicanos quanto democratas. Em apenas cinco estados, a disputa foi acirrada para decidir qual seria o partido majoritário. Senadores com forte influência, como os republicanos Rick Santorum, da Pensilvânia, e George Allen, da Virgínia, perderam a reeleição. Allen perdeu por uma diferença de apenas 8 mil votos para o democrata Mark Webb, ex-republicano e ex-secretário da Marinha no governo Reagan.
Um resultado importante veio de Connecticut. O senador democrata Joe Lieberman (um moderado com posições mais próximas às da Casa Branca em política externa) perdeu a indicação de seu partido para concorrer ao Senado. Teve que concorrer como independente, e venceu.
Nova divisão do poder
Revertendo uma antiga vantagem republicana nos estados, os democratas venceram em 28 dos 50 governos estaduais, merecendo destaque os estados de Ohio e Nova Iorque, antes governados por republicanos. Porém, os republicanos mantiveram o poder na Flórida, no Texas e na Califórnia, todos de grande peso econômico e eleitoral. Arnold Schwarzenegger, governador da Califórnia, foi um dos poucos casos de sucesso eleitoral entre os republicanos. Reelegeu-se com 56% dos votos em um reduto tradicionalmente democrata.
Os resultados dos pleitos estaduais são muito importantes, podendo-se destacar dois fatores. Primeiro, é no âmbito dos estados que se decide o redesenho dos distritos eleitorais. Tal prática, comum na política norte-americana, permite ao partido vencedor em cada estado (e com maioria no Legislativo estadual) redesenhar o traçado geográfico dos distritos eleitorais em cada estado. Em segundo lugar, os governos estaduais apresentam-se como loci políticos de onde provêm presidenciáveis em potencial. Bill Clinton governou o estado do Arkansas e George W. Bush o estado do Texas antes de serem presidentes. Outro importante exemplo é Ronald Reagan, que governou a Califórnia por oito anos antes de chegar à Casa Branca.
As conseqüências do resultado da eleição em curto e médio prazo são consideráveis. No âmbito da relação Executivo-Legislativo, o país volta a ter os poderes divididos. O presidente não conta mais com apoio majoritário nas duas Casas e se verá na situação de ter que negociar continuamente com a oposição. Os democratas terão poderes substanciais para influir em pontos importantes, como o orçamento. Também poderão obstruir projetos importantes do governo Bush no Congresso, como a reforma no sistema de seguridade social e o estabelecimento de corte de impostos permanentes, uma das principais bandeiras defendidas por Bush ao longo de seu mandato.
Não obstante, emendas à Constituição, projetos de lei e resoluções que necessitem tramitar nas duas casas do Congresso precisam contar com a sanção presidencial. Caso o presidente não concorde com leis aprovadas pelo Congresso, poderá vetá-las. E o veto presidencial, para ser derrubado pelo Congresso, precisa contar com dois terços dos votos nas duas Casas. A maioria democrata é bem inferior a dois terços, sobretudo no Senado, o que tornará muito difícil a derrubada de vetos presidenciais. Resultado: assim como o presidente verá seu poder de agenda limitado pelo Congresso, este também não terá como legislar unilateralmente, à revelia do Executivo.
Eleições presidenciais
Com o término das eleições legislativas de 2006, aumentam as especulações sobre as eleições presidenciais de 2008. Pela primeira vez em décadas não se terá alguém com passagem pela Casa Branca concorrendo. O presidente George W. Bush encerrará seu segundo mandato, não podendo concorrer a uma nova reeleição, e sabe-se que seu vice, Dick Cheney, também não concorrerá à Presidência. Abre-se espaço, portanto, para uma renovação política importante na política norte-americana no seu mais alto escalão.
Do lado democrata, Hillary Clinton, reeleita para o Senado por Nova Iorque com 67% dos votos, aparece como nome forte para concorrer à Presidência, principalmente depois que o ex-governador da Virginia Mark Warner declarou que não se candidatará. Warner, democrata mais ao centro, era visto como uma real alternativa a Hillary. O senador Barack Obama, de Illinois, apesar de muito jovem e com pouca experiência política (foi eleito pela primeira vez para o cargo atual em 2004) possui forte carisma. Pode ser o primeiro presidente afro-americano da história do país.
O democrata Tom Vilsack, ex-governador por duas vezes pelo estado de Iowa, foi o primeiro democrata até o momento a declarar formalmente a intenção de se candidatar a presidente. Um nome que sai enfraquecido das eleições deste ano é o do senador John Kerry, adversário de Bush nas eleições de 2004. A uma semana das últimas eleições, Kerry fez um discurso sugerindo que as tropas norte-americanas seriam pouco escolarizadas e que em razão disso estariam "afundadas" no Iraque. Tal declaração teve repercussão muito negativa nos Estados Unidos. Apesar de a guerra não ser popular, o apoio às tropas é muito grande. E um comentário pejorativo sobre os membros das Forças Armadas, sobretudo em tempo de guerra, foi a gota d`água para muitos.
Entre os republicanos, os dois nomes de destaque são Rudolph Giuliani, ex-prefeito de Nova Iorque, e John McCain, senador pelo estado do Arizona. Ambos são considerados vozes mais moderadas e independentes dentro do partido republicano. Giuliani adquiriu fama de administrador competente e ficou marcado como um líder importante após os atentados de 11 de setembro. McCain, veterano da guerra do Vietnã e ex-prisioneiro de guerra, é muito respeitado nacionalmente, tendo atuado de forma incisiva quanto a reformas no financiamento das campanhas eleitorais.
Os dois nomes possuem grande aceitação junto ao eleitorado independente (sem predileção partidária) e até mesmo entre democratas, o que pode ser decisivo em 2008, uma vez que Hillary conta com alto índice de rejeição, variando entre 35 a 40%, segundo pesquisas de opinião. Conservadores sociais (defensores das normas e valores sociais tradicionais) como Rick Santorum e George Allen, derrotados na reeleição ao Senado, saem enfraquecidos.
Sem mudanças drásticas à vista
Em suma, pode-se afirmar que o resultado das eleições mostra um grau considerável de insatisfação popular com um Congresso pouco operante, políticos envolvidos em casos de corrupção, gastos governamentais elevados e com os rumos da política externa no Iraque. Entretanto, não se podem esperar mudanças drásticas nos rumos das políticas interna e externa. O poder legislativo do Congresso é contrabalançado pelo nada desprezível poder da agenda presidencial. E, no âmbito da política externa, as diretrizes básicas cabem ao presidente.
A influência democrata se dará indiretamente, por meio da votação do orçamento para a guerra, por exemplo. Haverá, conseqüentemente, a necessidade de uma forte cooperação bipartidária para garantir a governabilidade nos próximos dois anos. As crenças e valores políticos dos norte-americanos, ao que tudo indica, não mudaram substancialmente.
Prova disso é que em sete estados votou-se contra o casamento homossexual, em referendo, estabelecendo o casamento como uma instituição firmada exclusivamente entre um homem e uma mulher. Nas eleições de 2004, as decisões em referendos em prol do casamento entre pessoas do mesmo sexo também predominaram. Os valores conservadores entre os eleitores não retrocederam. Todavia, esse conservadorismo político não se mostra suficiente para garantir vitórias eleitorais.
Isso explica em parte a derrota republicana. O eleitorado não ficou enamorado pelos democratas, mas sim desapontado com os republicanos, uma vez que tiveram maioria nas duas Casas e não aprovaram importantes reformas esperadas pela própria base de apoio republicana. O eleitor norte-americano quer resultados efetivos para os problemas nacionais, para as questões mais inquietantes. Dos democratas se espera que forneçam soluções e alternativas. Criticar já não é mais suficiente. O poder traz consigo responsabilidades, as quais passarão a ser divididas entre os dois partidos. Quem fornecer melhores propostas poderá ser gratificado nas urnas daqui há dois anos.
* Bruno Hoepers é estudante de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB).
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