Renata Camargo e Edson Sardinha
Está no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa: baixaria – substantivo feminino que define uma pessoa, coisa, ação ou circunstância grosseira, má, desagradável, anti-social, violenta, ordinária; baixo-astral. Seja qual for a definição semântica, muitas vezes essa palavra se confunde com a política.
E em algum momento essa combinação se revela mais explosiva do que na reta final das campanhas eleitorais. Se, nas eleições presidenciais de 2006, o eixo dos debates girou em torno de questões éticas, como o mensalão, e ideológicas, como as privatizações, na disputa municipal deste ano o espetáculo preponderante tem sido outro.
Xingamentos públicos, distribuição de panfletos apócrifos, trocas de acusações pessoais e ameaças foram apenas alguns dos expedientes utilizados por candidatos, assessores e cabos eleitorais no “vale-tudo” das eleições.
Para completar, o festival de “gentilezas” não está mais restrito ao horário eleitoral gratuito no rádio e na TV e ao sabor das paixões das ruas. A cada eleição, ganha espaço no mundo virtual com a disseminação de vídeos e mensagens eletrônicas pela internet, artifícios que dificultam o trabalho de fiscalização da Justiça eleitoral, numa história quase sempre sem mocinhos.
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Para especialistas em política e comunicação, esse tipo de estratégia é arriscado, já que o eleitor pode tanto reprovar o expediente quanto se identificar mais com a “vítima” do que com o agressor. Alguns candidatos, segundo eles, já estão sentindo isso na pele.
Efeito questionável
“A baixaria nas campanhas eleitorais vem em função da tensão e do fato de os candidatos estarem praticamente empatados ou com disputa acirrada. Essas acusações acontecem quando um dos candidatos quer melhorar sua situação. Mas o efeito dessas acusações – se vai repercutir bem ou não para o candidato – depende do nível de escolaridade do eleitorado”, explica o professor Manuel Sanches, do departamento de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Na avaliação do sociólogo e jornalista Laurindo Leal Filho, esse tipo de espetáculo faz parte das disputas políticas e está longe de ser produto nacional. O problema, ressalta ele, é que muitos candidatos não têm pudor em lançar mão de qualquer expediente para ganhar as eleições.
“As baixarias fazem parte do jogo político, mas acho que há limites entre as trocas de acusações. Os argumentos podem até ser mais violentos, mas dentro dos limites da esfera política, nunca ultrapassando esse campo”, adverte Laurindo, professor de jornalismo da Universidade de São Paulo (USP) e apresentador do programa VerTV.
Uma mostra do nível da atual campanha pode ser tirada de alguns episódios que marcaram as eleições nos três maiores colégios eleitorais do país: São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte.
São Paulo
O caso que ganhou maior repercussão nacional veio da capital paulista, onde a vida privada dos candidatos passou a ser usada como arma para atingir a imagem do adversário e angariar votos dos eleitores.
No último dia 14, após receber críticas de integrantes do próprio PT, a coordenação da campanha de Marta Suplicy retirou do ar um vídeo que questionava a vida íntima do prefeito Gilberto Kassab (DEM), candidato à reeleição: “Você sabe mesmo quem é o Kassab?… Sabe se ele é casado? Tem filhos?” (leia mais e confira o vídeo).
“Se a expectativa era a de melhorar os índices de intenções de votos, isso não se confirmou. O marqueteiro de Marta se equivocou ao fazer essa relação e isso pode até ter prejudicado um pouco a candidata se levantar nas pesquisas”, avalia Laurindo Leal Filho.
Marta, que ficou conhecida nacionalmente defendendo os direitos dos homossexuais, negou qualquer intenção de questionar a orientação sexual do candidato e ressaltou que sua vida pessoal sempre foi explorada por adversários políticos.
Já os ataques à candidata ganharam corpo na internet, com a disseminação de emails que invadem a vida conjugal da candidata e fazem insinuações sobre seu processo de separação do senador Eduardo Suplicy (PT-SP).
Esse tipo de invasão não chega a ser novidade na vida da candidata. Em 2004, quando concorreu sem sucesso à reeleição, a então prefeita usou o horário eleitoral gratuito para explicar o fim de um casamento de quatro décadas. “A separação foi muito dolorosa. Me diziam que as pessoas poderiam não entender. Mas não era justo. Não era justo comigo, não era justo com o Eduardo nem com nossos filhos”, disse ela na época.
Belo Horizonte
Outro vídeo que está correndo a internet também foi utilizado em inserção do horário eleitoral em Belo Horizonte. A campanha de Márcio Lacerda (PSB) exibiu uma gravação em que o adversário, o deputado federal Leonardo Quintão (PMDB), aparecia numa convenção do PMDB, em Ipatinga (MG), conclamando a militância a ganhar e chutar “a bunda” dos petistas, que fazem parte da coligação liderada pelo PSB (veja).
O peemedebista recorreu à Justiça para tentar retirar a propaganda do ar. Segundo ele, as imagens foram usadas indevidamente e a conclamação não passava de uma brincadeira (confira). Partidários do peemedebista reagiram e acusaram o adversário de tentar comprar o apoio de vereadores.
Dias depois, o site de Lacerda foi invadido por hackers que se autodenominaram integrantes do “Movimento Estudantil Guerrilheiro da Web”, deixando fora do ar a página com a mensagem: “Fora corrupto!!! Fora Mensalão!!! Fora abuso de poder!!! (…)”. Em outro material utilizado na internet, Lacerda chamou Quintão de “ator-candidato” e “caipira ingênuo”.
Rio de Janeiro
No Rio, além de vídeos postados na internet por simpatizantes dos dois candidatos, a campanha tem sido marcada pela distribuição de panfletos apócrifos. O deputado Fernando Gabeira (PV) é o principal alvo. No último dia 16, fiscais do Tribunal Regional Eleitoral (TRE-RJ) apreenderam 30 mil panfletos contra Gabeira. O material estava num carro que transportava propaganda de Eduardo Paes (PMDB).
O comitê de campanha do peemedebista divulgou nota sobre o episódio em que afirma que “repudia veementemente a distribuição de qualquer material ofensivo ou difamatório contra qualquer candidato” e que “caso algum colaborador da campanha seja identificado por esse ato irresponsável será imediatamente afastado dos trabalhos políticos.”
Os folhetos associam Gabeira ao uso de drogas e ao “fim do casamento heterossexual”. Uma das versões dos panfletos diz: “Quem fuma, quem cheira, vota Gabeira”. O caso está sendo apurado pela Justiça eleitoral.
Por sua vez, Eduardo Paes também reclamou no TRE-RJ da distribuição de panfletos onde ele é tachado de “político profissional, demagogo, mentiroso, cria do pemedebismo-lulismo e meio bundão”. “Diga não a Eduardo Paes”, recomenda o folheto, que também associa o candidato ao vilão dos quadrinhos Duas-Caras.
TSE pede calma
As trocas de “delicadezas” entre candidatos neste segundo turno levaram o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Carlos Ayres Britto, a se manifestar na última segunda-feira (22). Inspirado nas metáforas futebolísticas do presidente Lula, Ayres Britto declarou que “eleição é disputa, mas não chega a ser uma partida de futebol”.
“É natural que a temperatura da discussão se eleve, mas sem baixarias. Apenas digo que é natural que a temperatura do debate se eleve, mas não a ponto de significar ofensa ao candidato”, disse o presidente do TSE, acrescentando que espera que os candidatos “prossigam no empenho” de fazer uma eleição “legítima, limpa, alegre e regular”.
“Quando a disputa vai ficando acirrada, e os candidatos percebem que chegou o tudo ou nada, os limites da ética ficam também acirrados. Mas isso não acontece só nas eleições brasileiras”, observa Leal Filho, que cita o exemplo das eleições presidenciais norte-americanas, onde os candidatos Barack Obama e John McCain vêm trocando farpas nas campanhas.
À frente nas pesquisas, Obama tem tentado evitar polêmicas com o adversário republicano. Em um dos vídeos, o candidato democrata é comparado com a cantora Britney Spears (confira).
Caso Lurian
O uso de acusações na esfera pessoal ou ataques de baixo calão contra o adversário é recorrente nas eleições brasileiras. Em 1989, a campanha de Fernando Collor utilizou, na reta final da campanha em segundo turno, um depoimento de uma ex-namorada do então candidato Lula (PT) em que ela o acusava de ter lhe pedido que abortasse a filha dos dois, Lurian. Denúncia prontamente negada pelo petista.
“Naquela ocasião, Collor venceu as eleições de 1989, mas não foi essa questão que derrotou Lula. Ao contrário, pegou muito pior para o Collor”, avalia Leal Filho, para quem as acusações de cunho pessoal do adversário, como ter amante, filho fora do casamento e opção sexual, não influenciam no voto do eleitorado brasileiro.
“Não temos uma cultura que estabeleça como impedimento à ascensão política padrões morais ou formas de organização familiar. Denúncias de corrupção têm impacto muito maior”, argumenta. “Nesse ponto, o eleitorado é muito mais sagaz do que o europeu. Na Europa, já houve casos de primeiro-ministro renunciar por ter uma amante”, acrescenta.
Ainda que o horário eleitoral, muitas vezes, seja utilizado como espaço para acusações pessoais, a eliminação desse tipo de programa representaria um retrocesso na democracia, na avaliação de Leal Filho. Para o professor, é preciso apenas estabelecer limites.
“Deve-se, por exemplo, limitar o uso de artifícios eletrônicos para fantasiar a realidade e estabelecer limites para ataques pessoais. Infelizmente, o horário eleitoral acabou sendo contaminado pelo próprio papel que a TV exerce no Brasil, com linguagem e conteúdo do espetáculo e a lógica de mercado”, concluiu.
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