Baseado na realidade do século XIX nos Estados Unidos, V. O. Key (1955) foi o primeiro cientista político a desenvolver uma teoria que explicasse o acontecimento de eleições “críticas” – aquelas em que há a substituição da coalizão no poder pela ruptura brusca do padrão de comportamento eleitoral – e de “realinhamentos seculares”, quando ciclos se completam, grosso modo, de 30 em 30 anos, resultando numa nova configuração de nomes e forças partidárias. Esses ciclos estariam relacionados com o corte geracional: novos eleitores pensariam e votariam diferentemente dos antigos, o que refletiria na elite partidária (e vice-versa). Neste sentido, segundo Key, eleições críticas marcariam o início de um realinhamento partidário, de longo prazo, mais estrutural.
Na Ciência Política, há inúmeras definições de realinhamento e até dúvidas sobre como reconhecê-lo (é preciso olhar para que tipo de eleição, local e/ou nacional? Num sistema bipartidário, como o americano, é bem mais fácil detectar um realinhamento, mas, em sistemas altamente fragmentados, como o do Brasil, isso é possível?). É a reflexão que proponho nesta coluna tendo em mente principalmente, mas não exclusivamente, as eleições presidenciais brasileiras pós-ditadura (1989-2010), com reflexos nas eleições gerais de 2014.
Com exceção da primeira eleição direta para presidente da República, em 1989, todas as outras cinco eleições para presidente apresentaram apenas dois candidatos/partidos/coligações com reais chances de eleição: PT x PSDB. Em 2014, quando completamos um ciclo de 25 anos de eleições diretas para presidente e 28 de eleições pós-ditadura, é provável que, pela primeira vez, o cenário seja diferente. Por diversos motivos, expostos abaixo sem ordem de importância.
– Primeiro, já tivemos uma eleição “crítica”. Em 2002, numa coligação presidencial atípica para o até então autenticamente esquerdista PT, o partido conseguiu o apoio do direitista PL, fazendo de Lula alternativa palatável ao mercado financeiro e aos eleitores “independentes”. A coligação PT-PCdoB-PL-PMN-PCB acabou vencendo o PSDB-PMDB de Serra, inaugurando o primeiro governo de esquerda no Brasil.
Nos estados, em 2002, o PFL (ex-Democratas) começava a trajetória descendente de eleitos, passando de seis para quatro governadores. O PSDB, em 2002 também oposição, se equilibrava numericamente e mantinha poder sobre o maior colégio eleitoral do país, São Paulo, com a eleição de Alckmin. O PT, apesar de perdedor na matemática qualitativa das urnas (não emplacou governador nos três maiores colégios eleitorais), venceu nas Assembleias e ampliou a base de apoio no Congresso Nacional (além de ter conquistado a presidência da República). O avanço da esquerda foi sentido também com o sucesso do PSB, que subiu de dois para quatro governadores eleitos, em 2002.
A eleição de 2002 também pode ser considerada “crítica” por conta de outras mudanças no comportamento do eleitor: além do aumento dos votos de Lula nos “grotões” Brasil afora – o que acabaria sendo reforçado em 2006 com a ajuda do Bolsa Família – os petistas avançaram em todas as pesquisas de voto entre os “mais educados” – monopólio até então do PSDB de Fernando Henrique Cardoso.
– Em segundo lugar, com o Brasil polarizado nacionalmente há mais de duas décadas, muitos partidos de peso têm optado por se concentrar nos estados (o que, como mostro em livro de 2011, ficou mais do que evidente com a verticalização, em 2002 e 2006). Como é bem razoável a expectativa de eleger deputados federais (são 513 vagas), as legendas pequenas conseguem o apoio dos partidos grandes para atingir o quociente eleitoral e emplacar pelo menos um representante na Câmara Federal. Em troca, os partidos grandes contam com o apoio dos pequenos para eleger governadores, em coligações extensas o suficiente para presentear o candidato a governador com tempo generoso no horário eleitoral gratuito, no rádio e na TV. Ou seja: como competir para presidente tem custo-benefício relativamente alto, somente as legendas “nacionais” têm enfrentado o desafio.
PublicidadeMas com o enfraquecimento da oposição, a criação de novos partidos com políticos jovens e experientes (nunca tivemos tantos partidos com representação no Brasil) e a idade avançada das figuras nacionais tanto do PT quanto do PSDB, a bipartidarização para a presidência pode ter chegado ao fim, dando início a novo ciclo – o “realinhamento secular” de que fala Key.
A eleição para deputado federal de 2010 já dava pistas de que a política brasileira estava no divã. A renovação, de 44,6% (cálculo da Arko Advice), foi a menor entre as últimas cinco eleições. Sinal de que 1) ou os deputados estavam simplesmente desistindo da carreira pública 2) ou migrando para outros postos, longe de Brasília e perto do eleitor, que, com a proximidade, pode reconhecer o trabalho do postulante facilmente e premiá-lo com um cargo de mais visibilidade, no executivo local (hipótese mais provável, já especulada pelo brasilianista David Samuels em livro de 2003).
Na oposição, o PSDB parece não entender que não há alternativa para 2014 a não ser Aécio Neves. Se a atuação do senador é condizente com a de líder-além-de-Minas é outra história, o que deve mudar com a oficialização do nome dele para presidente. O importante agora é que o PSDB corre o risco de ser engolido por si mesmo se continuar sem candidato majoritário dentro do partido. Serra sempre teve altíssimos índices de rejeição; Alckmin dá sinais públicos de que quer permanecer no Palácio dos Bandeirantes, além de ter base eleitoral bastante localizada.
Então, se 2014 fosse hoje, mantidas temperatura e pressão constantes (ok, ficção), a corrida presidencial poderia muito bem contar com PT e PSDB como legendas/figuras competitivas, mas também com a terceira colocada nas urnas em 2010, a ainda sem-partido-depois-do-PV Marina Silva e com o governador de Pernambuco, Eduardo Campos, do PSB. Para escrever esta coluna, conversei com alguns políticos proeminentes do partido, de diferentes estados. Todos afirmaram taxativamente que, em 2014, o partido bancaria a candidatura própria. Faz sentido: reeleito, com experiência política e administrativa em cargos diferentes no estado e em Brasília, o próximo passo “natural” é o Palácio do Planalto. Seria uma disputa interessante, a começar por Pernambuco, o estado natal de Lula, onde Campos enfrentaria eleitores divididos entre PT e PSB.
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