Em 2010, quando Plínio de Arruda Sampaio (1930-2014) emprestou um certo ar anarquista à sua campanha presidencial, o marasmo dos discursos em meio à polarização PT-PSDB foi sacudido pela franqueza de alguém que, sem qualquer chance de vitória, pôde ousar à vontade. Há quatro anos, o então candidato do Psol arrancava gargalhadas em debates e sabatinas de TV, deixando mediadores e adversários em verdadeiras saias curtas diante de suas “verdades”. Aos 80 anos, Plínio carregava em sua figura aquela espécie de avô ranzinza que, no topo da árvore genealógica, costuma enrubescer a família inteira em convescotes de domingo.
Eis que, quatro anos depois, o estilo volta à baila no baiano Eduardo Jorge, 65 anos a serem completados em 26 de outubro, em meio ao segundo turno das eleições. Médico sanitarista por formação e candidato do PV, que em 2010 conquistou quase 20 milhões de votos com a então candidata à Presidência da República Marina Silva, Eduardo Jorge não hesita em arriscar.
Alto, esguio, e com uma barbicha grisalha, faz lembrar Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes, só que com a vice-prefeita licenciada de Salvador, Célia Sacramento (PV), a tiracolo no lugar de Sancho Pança. No entanto, mesmo diante de tantas mazelas e do desalento que diz sentir em relação a certas práticas políticas, ele está longe de encarnar ao pé da letra o Cavaleiro da Triste Figura – embora pareça acreditar, ser andante que é, nos enredos romanceados que a vida pública lhe apresenta. Integrou partidos diferentes, serviu a ideologias díspares, resignado ante o elevado grau de ficção do próprio roteiro.
Mais novo do que Plínio, Eduardo é um “tio” metade ranzinza, metade boa praça. Com um quê de cavaleiro andante mais engenhoso do que fidalgo, dissimula o que parece ser perda de lucidez, sugerindo que apenas se vale de ciosa estratégia: em debates marcados pela polidez e pelo cuidado com a fala, tem roubado a cena com tiradas irônicas e hilariantes, pontuadas pela inteligência e pela presença de espírito. Vez ou outra com alguma agressividade, e sempre com muita assertividade. E, sem precisar recorrer à deselegância que tem marcado a campanha, deve fazer inveja àqueles candidatos tão preocupados com a formalidade e o efeito de suas falas.
Um exemplo da “performance” sarcástica de Eduardo foi vista em 26 de agosto, no debate promovido pelo Grupo Bandeirantes. A certa altura das discussões, ao criticar as contas do governo Dilma Rousseff, ele se dirigiu a Marina Silva, agora candidata do PSB, e mandou: “Se auditar nossa dívida e colocar numa ressonância, ela vai sair magrinha como você”, comparou, levando muitos ao riso. E Marina à escala máxima da contrição.
No segundo debate entre presidenciáveis, este realizado pelo SBT, ele recusou entrar no mau tempo instalado entre um jornalista e o candidato do PRTB, Levi Fidelix. Chamado a comentar resposta um tanto irritadiça do colega, Eduardo Jorge provocou nova sessão de risadas da plateia. “Bom… Eu não tenho nada a ver com isso”, declarou, com as mãos erguidas em sinal de esquiva. “Eu vou aproveitar o meu minuto e dizer que o PV tem uma proposta para lá de ousada de reforma política, porque o PV é um partido democrático!”
Em entrevista ao Congresso em Foco (assista ao vídeo e leia a íntegra), Eduardo Jorge falou por quase uma hora e meia. Pouquíssimas vezes sorriu, e uma ou outra ironia proferiu em meio a reflexões eivadas de seriedade. Como quando falou sobre temas que, historicamente, são evitados pela maioria dos candidatos de olho no voto conservador, e que agora não podem mais ser ignorados: drogas, aborto, casamento entre homossexuais. Especialista em planejamento familiar, Eduardo é a favor da legalização das drogas e do aborto assistido, desde que com a devida regulamentação e implacável controle por parte do Estado e das respectivas autoridades competentes. Já acerca do casamento gay… Bem, ele tem mais com que se preocupar.
Publicidade“As pautas são pelo menos três. A primeira delas é a questão da livre orientação sexual, que já avançou no Brasil. O Brasil é um país muito mais liberal do que era antigamente, mas continua tendo preconceitos e perseguição contra essas pessoas que querem somente ter a sua livre orientação sexual respeitada. O que isso atrapalha a mim, a você, a ele? Não atrapalha em nada! É puro preconceito, puro resíduo de ideias antigas”, fustigou, abordando as demais questões.
“O maior fracasso de política pública internacional é essa da convenção da guerra às drogas, de 1961. Piorou tudo: aumentou o poder dos criminosos, que viraram uma corporação riquíssima, com exércitos que, inclusive, dominam territórios aqui no Brasil”, acrescentou, ao se dizer favorável à legalização de apenas algumas drogas.
“Para diminuir o número de abortos, temos de expandir o planejamento familiar, ter uma educação sexual no ensino médio, para evitar a epidemia de gravidez de meninas. Mas enquanto isso não acontece, porque isso é um processo, eu tenho 800 mil mulheres por ano que estão fazendo a interrupção da gravidez em condições precárias. Por ano! E a lei brasileira diz que essas 800 mil mulheres – que são católicas, que são evangélicas, que são de religião afrodescendentes – são criminosas”, protestou Eduardo, ex-secretário de Saúde e também do Meio Ambiente de São Paulo.
À parte o caráter espirituoso de algumas de suas intervenções, Eduardo Jorge tem muito cuidado quando o assunto é Marina Silva, sua ex-companheira de legenda. Instado a comentar sua contrariedade em relação à neutralidade dela e do PV no segundo turno, em 2010, o candidato é cauteloso com as palavras. “Foi uma coisa errada dela. Mas do PV também. Foi a Marina e a direção do PV. Eu estava na reunião – que classifico de soviética, para consagrar essa posição 100%, tipo votação na União Soviética. Eu, que estava na primeira fila, votei contra. Os chefes que estavam à mesa me olharam e disseram: ‘O que é que esse insistente, esse irritante está levantando a mão’?”, recordou Eduardo, para quem o partido tinha de ter sinalizado um caminho aos seus eleitores – para ele, o então candidato José Serra (PSDB).
Co-fundador do PT, deputado estadual e constituinte pelo partido em várias legislaturas, entre 1983 e 2003, Eduardo Jorge sabe que são quase nulas as chances de ser eleito presidente da República. Chega à mais importante disputa de sua vida pública, iniciada no final dos anos 1970, quase sem pontuar nas pesquisas de intenção de voto. Autodefinido como “socialista libertário”, ele faz questão de lembrar que é o verdadeiro autor da lei dos medicamentos genéricos. “E não José Serra”, alfineta, em tom de galhofa, referindo-se ao ex-ministro da Saúde. Casado e pai de seis filhos, Eduardo pode não protagonizar a corrida presidencial, mas já foi eleito como o presidenciável mais excêntrico do pleito atual.
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